“Nada mudou nesses nove meses” é uma das frases mais ouvidas na Praça Tahrir
CAIRO – Nove meses depois da revolução que derrubou o ditador Hosni Mubarak, no mais importante feito até aqui da Primavera Árabe, os egípcios vão às urnas amanhã para eleger o Parlamento em meio a uma nova convulsão. Em vez de representar um passo na consolidação da democracia, as eleições de amanhã no mais populoso país do mundo árabe servem para realçar as incertezas de um processo inconcluso.
“Nada mudou nesses nove meses”, é uma das frases mais ouvidas na Praça Tahrir, o epicentro dos protestos, cujo nome significa “libertação”. O grande embate esperado para essas eleições era entre conservadores islâmicos – representados pela bem organizada Irmandade Muçulmana, favorita na votação – e liberais seculares. Esse duelo vai ocorrer, mas acabou ficando em segundo plano – assim como a própria eleição – diante das manobras dos militares para garantir sua fatia de poder e privilégios, mantidos desde outra revolução, a de 1952, liderada pelo coronel Gamal Nasser, que pôs fim à monarquia.
Assim como em janeiro e fevereiro, islâmicos e seculares deixaram suas disputas de lado, na última semana, para enfrentar o inimigo comum, no que é considerado “o segundo tempo” da revolução. Um homem morreu ontem atropelado por um carro da polícia em um confronto em frente à sede do governo, pondo fim à trégua de dois dias e elevando o número de mortos para 42.
Por trás da queda de braço entre militares e manifestantes, partidos e movimentos sociais, que exigem a renúncia do Conselho Supremo das Forças Armadas, há nuances que evidenciam a complexidade do sistema político que se vai conformando.
Essa onda de protestos começou na sexta-feira retrasada, quando a Irmandade Muçulmana organizou uma manifestação na Praça Tahrir contra um esboço de Constituição elaborado pela junta militar. O texto, que circulou na imprensa, previa que a cúpula militar nomearia 80 dos 100 constituintes – esvaziando o Parlamento, a quem caberia indicá-los – e teria poder de veto sobre temas de seu interesse na elaboração da Carta.
Na manhã seguinte, a polícia invadiu a praça e queimou uma dúzia de tendas dos manifestantes. Foi a senha para que milhares de jovens liberais e salafistas (islâmicos mais radicais do que a Irmandade) ocupassem a praça.
Guiada pelo pragmatismo, a Irmandade abandonou as ruas, temerosa de que os protestos levassem ao cancelamento das eleições que ela tinha chances de vencer.
O confronto entre seculares e as Forças Armadas parece ter queimado uma ponte que vinha sendo cuidadosamente construída. Inspirados no modelo turco, liberais e militares imaginavam que as Forças Armadas poderiam servir de dique para a influência do islamismo sobre o Estado egípcio.
Mas a ânsia com que os militares se agarraram ao poder nos últimos nove meses, mantendo e até ampliando sua participação nos negócios do governo e esboçando artigos constitucionais que blindavam o orçamento da Defesa da ingerência e fiscalização do governo e do Parlamento, ruiu a credibilidade que a instituição conquistara, ao recusar-se a reprimir as manifestações, em janeiro e fevereiro, e retirar o apoio a Mubarak, precipitando sua renúncia.
Encenação. A lua de mel dos revolucionários com o seu “Exército popular” deu lugar à amarga lembrança de que o marechal Mohamed Hussein Tantawi, chefe da junta militar, foi ministro da Defesa de Mubarak durante duas décadas. E autoridades militares e civis do regime anterior continuam ocupando postos-chave. A sensação de que os egípcios estão envolvidos em uma encenação, familiar no período de Mubarak (ex-oficial da Força Aérea), voltou com toda a força.
Esse sentimento tende a contaminar o processo eleitoral. Ao longo de décadas, os egípcios cansaram-se de ir às urnas para legitimar referendos e eleições fraudulentas – a última foi há um ano, para um Parlamento dissolvido pela revolução.
Antes dos protestos, Mubarak preparava seu filho Gamal para sucede-lo em mais uma votação com cartas marcadas. Outra frase frequente ao longo da última semana na Praça Tahrir era: “As eleições não importam agora. O que importa é tirar os militares do poder”.
Publicado no Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.