País enfrenta primeiro teste democrático hoje; debate sobre futuro da religião na política divide a Praça Tahir, no Cairo
CAIRO – Os egípcios têm a sua primeira experiência com a democracia hoje, quando decidem em referendo se aprovam ou não as reformas da Constituição preparadas por um comitê de juristas. No centro da disputa que divide o país está uma decisão acerca do papel do Islã no Egito democrático. A proposta mantém o artigo 2 da Constituição, segundo o qual “o Islã é a religião do Estado” e “a principal fonte da legislação é a jurisprudência islâmica (Sharia)”.
Dos principais grupos políticos que participaram da “revolução” popular que derrubou há um mês o ditador Hosni Mubarak, no poder havia 30 anos, apenas a Irmandade Muçulmana apoia o sim. Os partidos tradicionais de oposição e as organizações que se formaram a partir do movimento realizaram ontem uma manifestação na Praça Tahrir (Liberação), berço da “revolução”, em favor do “não”. No fim da tarde, centenas de pessoas se aglomeravam na praça, observada por cerca de cem soldados da Polícia do Exército, que tinham ordens de evitar a interdição do trânsito. Os secularistas se queixam de não estar representados no comitê de juristas, integrado por dois fundamentalistas islâmicos.
Não há pesquisas de opinião. “Pela primeira vez vamos ter uma votação cujo resultado desconhecemos”, sorri a jornalista Namees Arnour, referindo-se ao fato de que, nos tempos de Mubarak, o resultado era sempre o mesmo: vitória do governo. De fato, pela primeira vez será possível medir a importância do voto conservador religioso, contra o peso do secularismo no Egito. Claro que essa não é a única questão em jogo. Ela vem misturada com outras, como o ritmo da transição democrática. A reforma prevê eleição em junho para um novo Parlamento e em setembro para presidente. Ambos teriam então seis meses para nomear 100 integrantes de uma Assembleia Constituinte, que em outros seis meses fariam uma nova Constituição.
Na Praça Tahrir, a questão inflama eleitores dos dois lados. O engenheiro químico Mahmud Abu al-Bashir, de 65 anos, trouxe na quinta-feira um cartaz escrito à mão explicando por que vai votar “sim”, e discursou em cima da mureta do jardim da praça para cerca de 20 pessoas. “Sou a favor da reforma porque poderemos escolher um presidente e se gostarmos dele o reelegemos, se não, votamos noutro”, explicou Al-Bashir.
“Além disso, o Artigo 2 não deve ser mudado. Somos na maioria muçulmanos e o Alcorão diz que os muçulmanos devem ser regidos pelo Alcorão e os cristãos, pela Bíblia”, continuou o engenheiro, que usava um “taeia”, o chapéu de algodão normalmente usado pelos fundamentalistas islâmicos, mas garantiu não ser um deles: “Não tenho nada contra os cristãos. Dei a minha filha o nome de Maria.”
O engenheiro eletrônico Mohamed Moatmed, de 27 anos, subiu na mureta para discordar de Al-Bashir. “Vou votar ‘não’ porque essa reforma manterá o Parlamento sob o domínio do Partido Nacional Democático (PND, de Mubarak) e da Irmandade Muçulmana”, disse Moatmed. “As pessoas terão pouco tempo para conhecer os candidatos. E não confio no Parlamento para ele nomear os 100 constituintes.”
“Voto ‘sim’ porque não acho que haja boas razões para rejeitar essa reforma”, disse o residente de oftalmologia Ahmed Hassan, de 27 anos. “Dizem que a Irmandade Muçulmana e o PND vão controlar o Parlamento. Ora, é muito simples: é só não votarem neles. As mudanças na Constituição são excelentes, e todo mundo concorda com elas.” Nesse ponto uma pequena multidão se havia formado em torno do repórter, e um tenente do Exército veio dispersá-la.
Um estudante de engenharia eletrônica de 22 anos, Amgad Salah, veio caminhando atrás do repórter. “Até agora não vi ninguém que me represente”, disse ele, explicando por que votará ‘não’. “Além disso, sou cristão, e não acho justo submeter todos os egípcios às normas do Islã.” O jovem citou um exemplo: “A lei muçulmana admite o divórcio, enquanto nós, cristãos, não o aceitamos.” Um em cada dez egípcios é cristão. Como a maioria dos eleitores, os cristãos nunca se sentiram estimulados a votar. Os analistas prevêem que eles votem em massa pelo “não”.
O cantor Mossad Nour, de 40 anos, compôs uma música a favor do não, e a cantava na praça, acompanhado do alaúde, espécie de violão árabe: “O tempo não é importante. Queremos uma Constituição que salve nosso país.” Nour disse temer que as reformas na velha Constituição “roubem a revolução dos jovens e não os deixem decidir”. Segundo ele, os jovens precisam de tempo para formar novos partidos. “Se não, os velhos políticos continuarão por cima.”
Do outro lado do espectro, o contador Abdel-Rahmen Heni, de 27 anos, com a barba típica dos salafistas, os radicais islâmicos, e sua jovem mulher inteiramente coberta, com exceção dos olhos, explicou por que vai votar “sim”: “Se a Constituição não for aprovada, poderá haver instabilidade, e outros países vão querer interferir nos assuntos internos do Egito.” Já Asmaa Emam, de 20 anos, estudante de administração, vestida com um chador (lenço no cabelo e vestido que cobre até os pés), declarou: “Se o ‘não’ vencer, uma nova Constituição permitirá que os cristãos sejam candidatos a presidente. Rejeito isso completamente. Somos um país islâmico. Temos de preservar a cultura islâmica.”
A contagem dos votos revelará o peso de cada uma dessas opiniões na heterogênea sociedade egípcia.
Ficha técnica
Data e horário: 19/3, das 8 às 19 horas
Eleitores: cerca de 45 milhões acima de 18 anos, exceto membros da Justiça, Forças Armadas e polícia
Principais mudanças na Constituição:
Artigo 75 – Diminui as exigências para se candidatar a presidente. Passam a ser necessários: o apoio de 30 deputados e de 30 mil eleitores em 15 províncias; ou ser nomeado por um partido com pelo menos um deputado.
Artigo 77 – Reduz o mandato de 6 para 4 anos e permite apenas uma reeleição (antes irrestrita).
Artigo 88 – Submete todo o processo eleitoral à supervisão da Justiça.
Artigo 139 – Obriga o presidente a nomear um vice dentro de 60 dias depois da posse (atualmente não prevê vice).
Artigo 148 – Estado de emergência só pode ser declarado com apoio da maioria do Parlamento e não pode durar mais de 6 meses a não ser que aprovado por referendo popular.
Artigo 179 – É revogado dispositivo antiterrorista que autorizava o julgamento de civis em tribunais militares e monitoramento invasivo dos cidadãos.
Artigo 189 – O presidente e o Parlamento terão de nomear uma Assembleia Constituinte de 100 cadeiras dentro de 6 meses depois das eleições. Ela terá mais 6 meses para reformar a Constituição, que será submetida a referendo popular.
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