Aparato de terror de Kadafi calava revolta

Com enforcamentos e demonstrações de força, regime impôs silêncio sangrento em Benghazi e por décadas conseguiu sufocar opositores

BENGHAZI – No bairro de classe média alta de Tapalino, em Benghazi, há um casarão de três andares incendiado, suas paredes marrons enegrecidas pelo fogo. No muro da frente há uma pichação que diz: “Este terreno foi roubado da família Boujarad.” A casa vizinha da direita é um sobrado branco, cujo muro da frente está parcialmente coberto por uma grande faixa de pano com os dizeres: “Velório de Ali Hassan Jeroush.”

Na casa marrom morava Hoda bin Amr, supervisora da aplicação do orçamento por todos os ministérios na região de Benghazi. Hoda ficou famosa durante o enforcamento de estudantes que tinham participado de um protesto contra o regime de Muamar Kadafi, por volta de 1987. Um dos condenados continuava se contorcendo, pendurado pelo pescoço. Hoda o agarrou pela cintura e puxou para baixo, para terminar de matá-lo.

O gesto de adesão ao regime lhe valeu altos cargos no governo e uma vida confortável. E também o ódio dos moradores de Benghazi. No calor do levante, no dia 20, quando milhares de jovens apoiados por soldados do Exército derrotaram as forças especiais no Quartel Fathil Abu Omar, Hoda fugiu com o marido e os filhos de casa, antes de ela ser incendiada por manifestantes. Na fúria, depredaram até os carros estacionados ao lado, que pertenciam aos vizinhos.

Jeroush, de 24 anos, estava no quarto ano de direito na Universidade Garyounis, Trabalhava com o pai, também advogado e dono de uma livraria grande, e tinha planos de se casar no verão (meados do ano).

No dia 18, Jeroush voltava caminhando do enterro de manifestantes mortos no protesto da véspera. Ele e outros jovens passavam na frente do quartel-general da Brigada Khamis, comandada por um dos filhos de Kadafi, na Avenida Haiari. De dentro do prédio, franco-atiradores dispararam contra o grupo. Jeroush levou um tiro de fuzil na cabeça. Morreu depois de três dias em coma.

Três minutos antes um primo seu da mesma idade também foi morto com um tiro disparado por franco-atirador noutro ponto da cidade, conta seu irmão Ibrahim, estudante de medicina de 22 anos. “Eu estava fazendo os exames finais na faculdade, se não teria ido para as manifestações também. Kadafi é um criminoso.”

Ibrahim conta que Hoda se mudou para a casa ao lado há cerca de cinco anos, mas que as duas famílias nunca tiveram contato. “Essa gente se achava melhor que os outros, não olhava para ninguém. Tinham cinco, seis carros, sempre de último tipo.”

A história da família Jeroush e de sua vizinha famosa simboliza o convívio dos líbios com o regime de Kadafi – objeto do seu ódio e do seu temor cotidiano. Para entender como um governo tão detestado sobreviveu 41 anos, é preciso medir a dose de medo que ele conseguiu incutir nos cidadãos, demonstrando que sua violência não tinha barreiras.

Amantes do futebol, muitos moradores de Benghazi ainda falam de um episódio ocorrido em 1997 no Estádio 28 de Março. O time da casa, Al-Ahli, enfrentava o Al-Ahel, de Trípoli, no qual jogava outro filho de Kadafi, Saadi – naturalmente com a camisa 10. Nas partidas, era comum Saadi esmurrar os adversários que o driblavam ou tomavam sua bola, sem que o juiz apitasse falta. Naquele dia, torcedores levaram um jumento para o estádio, com o número 10, e gritaram: “Saadi, filho de Safia (a mulher de Kadafi), você destruiu o futebol da Líbia.” No intervalo, as forças de segurança abriram fogo e mataram vários torcedores. A partida continuou no segundo tempo.

No dia 17 de fevereiro de 2006, diante da publicação das caricaturas do Profeta Maomé por um jornal dinamarquês, os fiéis receberam nas mesquitas a orientação do governo de que poderiam realizar um protesto, como ocorria noutros países muçulmanos. O ato inevitavelmente se tornou um protesto contra o regime – um problema muito mais premente para os líbios. Acabou duramente reprimido.

Quando se aproximava o quinto aniversário desse episódio, o governo prendeu o advogado Fathi Terbil, que representa as famílias de uma parte dos 1.270 executados na temida prisão de Abu Salim, em Trípoli, depois de outra manifestação em Benghazi, em junho de 1996. Os clientes e colegas de Terbil reuniram-se no dia 15 de fevereiro em frente à Corte de Justiça, na Praça dos Mártires, para pedir sua libertação. Na primeira noite, as forças de segurança mataram 3 manifestantes; no segundo dia, 40. A repressão converteu os protestos pacíficos em levante.

Publicado no Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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