Ao longo de um ano e meio, as revoluções no mundo árabe têm afligido observadores no Ocidente e no interior dos próprios países em convulsão, diante das incertezas acerca do potencial desestabilizador das divisões tribais e da mescla entre religião e política. Os resultados preliminares das eleições parlamentares na Líbia lançam uma nova luz sobre esses processos revolucionários – e podem desfazer muito da mística sobre a política no mundo árabe, mostrando que suas dinâmicas não são necessariamente tão diferentes das democracias ocidentais.
Nas duas maiores cidades da Líbia – Trípoli, com 2 milhões de habitantes, e Benghazi, com 1 milhão -, que somadas representam três quartos da população do país, os fiscais de diversos partidos dão conta de que a Aliança das Forças Nacionais, liderada pelo ex-primeiro-ministro Mahmud Jibril, obteve mais da metade dos votos, enquanto que a Irmandade Muçulmana e seu aliado mais radical, Al-Watan, obtiveram juntos ao redor de um terço.
Jibril pertence à tribo Warfalla, a mais numerosa do país, com cerca de 1 milhão de integrantes (um quarto da população). Mas essa não é sua única credencial. Durante sete meses e meio, ao longo de toda a guerra civil, ele dirigiu o Comitê Executivo do Conselho Nacional de Transição (CNT), um cargo que passou a ser identificado como o de “primeiro-ministro”. Ele era também o principal interlocutor do CNT perante as potências ocidentais, tendo tido um papel central em angariar o apoio do então presidente francês Nicolas Sarkozy à intervenção da Otan na Líbia.
Formado em economia e em ciência política, ex-professor da Universidade de Pittsburgh (EUA) e diretor dos dois principais órgãos de planejamento e de desenvolvimento econômico do governo de Muamar Kadafi, nos quais conduziu reformas liberalizantes, até o início da revolução, Jibril é visto ao mesmo tempo como experiente tecnocrata, executivo e político. É de longe o mais experimentado e conhecido dos líderes partidários. Durante a campanha, ele procurou demonstrar que é um homem crente em Deus, mas que considera funesta a mescla entre religião e política.
Como se vê, a vitória de sua aliança é perfeitamente compreensível dentro de uma lógica eleitoral familiar à experiência ocidental. Mas a tendência a ver nisso uma prova de que a Líbia seja uma exceção dentre os países da Primavera Árabe é precipitada. Os processos na Tunísia e no Egito não fogem necessariamente a essa mesma lógica.
Tanto na Tunísia quanto no Egito, as forças seculares sofreram de dois problemas fatais em qualquer eleição: apresentaram-se fragmentadas e não conseguiram provar sua diferenciação em relação à ordem anterior, da qual tunisianos e egípcios pagaram um alto preço para livrar-se. O marechal-do-ar Ahmed Shafiq, que disputou o segundo turno no Egito com Mohamed Morsi – doutor em engenharia pela Universidade do Sul da Califórnia e ex-deputado pela Irmandade Muçulmana – aceitou o cargo de primeiro-ministro de Hosni Mubarak no calor da repressão às manifestações, em 31 de janeiro do ano passado.
Jibril deixou o governo assim que começou a insurgência na Líbia. Ele ao mesmo tempo tem experiência de governo e é um revolucionário da primeira hora. Além disso, foi capaz de reunir em torno de si grande parte dos liberais. No Egito, o ex-chanceler Amr Moussa, por exemplo, distanciou-se rapidamente de Mubarak, mas não foi capaz de reunir as forças seculares em torno de sua candidatura. Mohamed ElBaradei, ex-diretor da Agência Internacional de Energia Atômica, também se distanciou logo do regime, mas é visto como alguém que fez carreira fora do Egito e não conhece a realidade do país.
Em contrapartida, o tunisiano Ennahda e a egípcia Irmandade Muçulmana apresentaram-se como partidos organizados, coesos e com um discurso moderado, nacionalista e populista, que contemplou as preocupações sociais e econômicas das respectivas populações. São fórmulas que têm funcionado em todas as democracias ocidentais. Assim como já havia ocorrido antes na Turquia, a vitória do Ennahda e da Irmandade Muçulmana não desautoriza a percepção de que a Tunísia e o Egito sejam sociedades liberais, para os padrões muçulmanos. Nem que estivessem, por causa do elemento religioso, à margem das leis que regem a análise do comportamento eleitoral. Tunisianos, egípcios e agora os líbios votaram de forma racional, em quem lhes inspirou mais confiança e esperança. Como em qualquer outro lugar.
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