Líbios temem instabilidade após ditadura

População está armada e muitos acreditam que haja risco de uma onda de violência na transição para um novo governo

TRÍPOLI – Wissam Mohamed caminhava ao redor da piscina coberta no quintal da casa de Muamar Kadafi, trazendo uma sacola plástica, quando encontrou o repórter do Estado. Tirou da sacola cheia de souvenirs recolhidos na casa uma foto de Kadafi vestindo uma túnica branca, sentado num cavalo branco com adornos vermelhos. “Um homem bom”, disse Wissam, entregando a foto ao repórter.

“Na época dele eu podia dormir em paz”, explicou Wissam, de 40 anos, empregado em um supermercado. “Agora vivo com medo. Há muitas armas, muito conflito, muita gente querendo governar. Antes só havia uma pessoa: Kadafi. A Líbia estava em paz. Era muito melhor. Eu gosto muito de Kadafi. Se Deus quiser ele voltará.”

Desde o fim da semana passada, quando os rebeldes avançaram sobre Trípoli, tornou-se muito difícil encontrar alguém que expresse apreço por Kadafi. Assim como era muito difícil encontrar quem o criticasse antes. Wissam, que não quis dar seu sobrenome nem ser fotografado, com receio de represálias, disse acreditar que 80% dos líbios pensam como ele, e só 20% discordam.

É impossível averiguar esse dado hoje. Mas Wissam não está sozinho. Mesmo apoiando a “revolução”, muitos líbios reconhecem ter medo da violência e da instabilidade que pode se seguir à queda de Kadafi. “Tem gente armada demais”, disse um jovem ao Estado. O Conselho Nacional de Transição, a liderança rebelde que agora se prepara para transferir-se de Benghazi para Trípoli, tem feito apelos para que os cidadãos entreguem suas armas e voltem à normalidade.

Uma grande quantidade de fuzis, sobretudo o lendário Kalashnikov russo projetado nos anos 70, está nas mãos dos civis. Muitos deles foram obtidos na luta e na invasão dos quartéis depois da derrota e fuga dos soldados. Outros foram contrabandeados pelos próprios militares, insatisfeitos com o regime.

O engenheiro Musadeq Habib, de 47 anos, que trabalhava num centro de pesquisas em comunicação das Forças Armadas, conta que essa foi sua participação na guerra civil: obter armas de amigos militares e distribuir para os voluntários. Muitos desses fuzis, apesar do desenho antiquado, nunca tinham sido usados.

“Os militares não estavam felizes”, testemunha Habib. O coronel da Força Aérea Mohamed Ashur, de 60 anos, que deu baixa em 2009, e o piloto de helicóptero da polícia Jamal Hamroni, de 50, ainda na ativa, passeavam de carro ontem por Trípoli, festejando a queda de Kadafi. “Viva a revolução”, gritavam pela janela do carro, com os dedos em V. As Forças Armadas regulares se sentiam desprestigiadas pelo regime, que reservava os melhores salários, equipamentos e treinamento para as brigadas de elite comandadas por pessoas da confiança de Kadafi, incluindo seus filhos.

“É um desastre, mas para se libertar é preciso fazer isso”, disse Habib, sentado em sua bicicleta, na qual veio passear na sexta-feira em frente a Bab al-Azizia, o quartel-general de Kadafi. “Não é aceitável fazer algo assim”, disse ele, apontando para a fortaleza atacada. “Lá dentro morava uma família. Mas ao mesmo tempo é um sonho. Às vezes tenho de me beliscar para ver se estou acordado. Ainda não tenho coragem de entrar lá. Antes eu não poderia falar com você. Eu seria preso imediatamente. Havia muitos olhos. É a primeira vez que posso falar com um jornalista.”

O mecânico Jafar Maskawii, de 45 anos, nasceu nas imediações de Bab al-Azizia, e assistiu fisicamente à transformação da Líbia num Estado militar controlado por um homem e sua família. “Quando eu era criança, Bab al-Azizia ocupava uma área pequena e daquele lado ali havia um bosque onde eu brincava”, disse Maskawii, apontando para o quartel-general da Brigada 77, que era comandada por Muatassam, filho de Kadafi. “Começaram a derrubar o bosque e a construir garagens de concreto para tanques. Eu tinha 11 anos e foi a primeira vez que ouvi falar essa palavra: tanques.”

Muskawii estudou três anos na Escola Manar, até que ela foi incorporada a Bab al-Azizia e desativada. Ele passou então para a Escola Mohamed Imgarief, onde estudou sete anos. Mas a escola também foi anexada ao complexo de Kadafi e fechada. “Aos 18 anos, parei de estudar para não ter que participar dos exercícios militares que todos eram obrigados a fazer nas escolas.”

Ele conta que seu irmão se mudou para a Itália para não ter de servir no Exército de Kadafi. “Os soldados dele não sabem comer com garfo e faca”, define Muskawii. “Só as pessoas de mente simples gostam de Kadafi.”

“A única coisa que era boa na época de Kadafi era a segurança”, reconhece Abdel Salam Ashur, irmão do coronel, e professor da Faculdade de Medicina da Universidade Al-Fatah. “Havia poucos crimes. Mas era só porque Kadafi queria se manter no poder”, diz Ashur, que morou no Brasil entre 1985 e 2001, fez mestrado em Belo Horizonte e doutorado em São Paulo. “A ditadura de vocês não chegou nem perto da daqui. Não existe na era moderna um homem tão mal quanto Kadafi.”

Ashur recorda que a polícia retirou-se das ruas no início do levante, há seis meses, e mesmo assim não houve onda de crimes. “A ordem e a segurança são mantidas pelo povo, o que é muito melhor”, diz Ashur, de 55 anos, que junto com os colegas parou de trabalhar em fevereiro, em protesto contra o regime. “Com democracia, teremos segurança.”

Jafar Maskawii e, ao fundo, as duas escolas em que estudou (esq. e dir.), incorporadas ao complexo de Bab al-Azizia/ Lourival Sant’Anna

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