Xeque Mohamed Bossidra fala dos 21 anos passados na prisão Abu Salim – 10 deles na solitária
BENGHAZI – O xeque Mohamed Bossidra tem 54 anos. Desses, passou 21 na prisão de Abu Salim, em Trípoli, entre janeiro de 1989 e o final de 2009 (sem contar outros seis meses em 1986 e três em 1987). Dez anos na solitária. “Sofri todos os tipos de tortura”, resume Bossidra, que foi solto como parte da suposta abertura política promovida por Seif al-Islam, filho de Muamar Kadafi, que o preparava para sucedê-lo. Agora o xeque atua como mediador entre o Conselho Provisório Líbio, de orientação predominantemente laica, e os fundamentalistas islâmicos, unidos na luta contra Kadafi.
Bossidra pertencia ao grupo fundamentalista islâmico Tablir (Mensagem), fundado em 1926 na Índia, por missionários dedicados a “conduzir os muçulmanos ao caminho da retidão”. Deixou o grupo e não aceitou cargo no governo transitório: “Agora prefiro me apresentar como independente, para que mais pessoas ouçam meus conselhos.” Como noutros países muçulmanos sob ditaduras não-teocráticas, os fundamentalistas islâmicos lutam contra o regime na Líbia. “Kadafi é a representação do mal”, define o clérigo.
O sofrimento em Abu Salim não abrandou suas convicções políticas e religiosas. Ele passou o tempo decorando o Alcorão, escrevendo quatro livros e centenas de artigos com orientação política e religiosa, passados de mão em mão entre os prisioneiros. Os diretores do presídio o mandavam para a solitária quando achavam que estava exercendo influência demais sobre os presos. À pergunta sobre como enfrentou a dor, Bossidra responde com simplicidade: “Nós muçulmanos acreditamos que só nos acontece o que tem de acontecer.”
“A sociedade líbia não se adapta a um regime teocrático”, descarta o xeque, ao delinear seu projeto político. “Defendo um Estado que obedeça aos princípios do Islã.” Ele prefere não entrar em mais detalhes, porque considera que este seja o momento de unir os líbios de todas as correntes políticas em torno do objetivo comum de derrubar Kadafi.
Em Abu Salim restam 200 prisioneiros políticos, diz ele, 30 dos quais fundamentalistas do Movimento Combatente Islâmico. A prisão foi cenário de uma chacina em 1996, quando 1.270 participantes de um protesto contra o governo em Benghazi foram executados.
As histórias de Bossidra em Abu Salim dizem muito da onipotência do regime. Seu filho só pôde visitá-lo pela primeira com 16 anos. Ao se despedir, pediu: “Dê-me um tapa, pai. Quero levar alguma coisa de você.” Bossidra o beijou no rosto. Para ter direito a pensão e sustentar os dois filhos do casal, a mulher de Bossidra foi obrigada pelo governo a se divorciar dele. Quando ela o visitava, como muçulmanos conservadores, não podiam ficar juntos no mesmo cômodo, porque tecnicamente não eram casados.
Quando ia ser solto, Bossidra foi chamado numa sala onde o aguardava o general Abdullah Sanussi, chefe de inteligência e cunhado de Kadafi. Torturador contumaz, Sanussi perguntou ao líder religioso se precisava de algo. Bossidra explicou o problema do divórcio. O chefe da inteligência voltou-se para um assistente: “É um problema legal ou burocrático?” O funcionário respondeu que era legal. “Então resolva”, ordenou Sanussi. “Nós somos a lei.”
Ao ser solto, Bossidra recebeu um telefonema de Seif al-Islam. Ofereceu-lhe dinheiro, casa e emprego em Trípoli. O xeque preferiu voltar para Benghazi. Bioquímico de profissão, ganha a vida trabalhando dois dias na semana num hospital em Al-Bayda, 190 km a leste de Benghazi. À pergunta sobre o que acha de Seif al-Islam (cujo nome significa “Espada do Islã”), o xeque responde: “É um mentiroso, como o pai.” E sobre Sanussi: “Kadafi é deus para ele. Faz qualquer coisa para agradá-lo.”
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