As (muitas) conspirações da Lava-Jato saudita

Uma sequência de acontecimentos improváveis em 48 horas muda o jogo de poder no maior produtor de petróleo do Oriente Médio

REI SAUDITA SE REÚNE COM EX SAAD AL-HARIRI, DO LÍBANO: o convidado renunciou ao cargo durante visita aos sauditas, alimentando ainda mais as desconfianças contra os sunitas na região | Reuters

Foi como se uma tempestade de areia tivesse varrido o Deserto Arábico: nada ficou no lugar. Príncipes, ministros e grandes empresários, num total de 30 pessoas muito conhecidas no reino e até então consideradas intocáveis, foram detidos no elegante Ritz-Carlton Hotel de Riad — afinal, ninguém é de ferro — por suposto envolvimento em corrupção.

O rei Salman anunciou a criação de uma comissão contra a corrupção, para coibir “a exploração por algumas almas fracas que colocaram seus interesses acima do interesse público”. A repentina operação Lava-Jato saudita veio acompanhada no mesmo fim de semana de uma sequência de acontecimentos anormais até mesmo para os padrões da região.

Um acidente de helicóptero matou no domingo o príncipe Mansur bin Muqrin, vice-governador da região de Asir e filho de um ex-príncipe herdeiro, que foi preterido em 2012 quando da ascensão de Salman como o primeiro na linha sucessória.

O 25.º filho de Ibn Saud, fundador do reino, Salman assumiu o trono em 2015 no lugar de seu irmão Abdullah. Agora, aos 81 anos, prepara seu filho Mohammed bin Salman, conhecido como MBS, para sucedê-lo, como o primeiro da terceira geração. Com tantos irmãos e primos envolvidos, não é uma sucessão tranquila.

O fim de semana começou com funcionários do governo saudita afirmando no sábado que haviam interceptado e destruído um míssil no nordeste de Riad, disparado pelos rebeldes houthis do Iêmen, que são alvo de bombardeios aéreos do reino. Os houthis são xiitas, apoiados pelo Irã, principal rival regional da Arábia Saudita. O reino anunciou um “bloqueio total” contra o Iêmen. Na terça-feira, Salman afirmou que o Irã pode ter cometido crimes de guerra contra o país ao fornecer mísseis a milícias do Iêmen.

Ainda no sábado, o primeiro-ministro libanês, Saad Hariri, que visitava o reino, renunciou ao cargo. Ele justificou sua decisão acusando o poderoso Hezbollah, partido e milícia xiita, de ter criado um “Estado dentro do Estado” no Líbano, com patrocínio do Irã. A acusação não é nova, mas o gesto foi dramático.

Hariri é sunita, corrente do Islã sobre a qual a Arábia Saudita se projeta como líder mundial — da mesma maneira que o Irã com a corrente xiita. O pai de Saad, Rafic Hariri, foi assassinado em 2005, em um atentado a bomba atribuído a agentes do governo da Síria, aliado do Irã e do Hezbollah. Ele era sócio dos sauditas em investimentos imobiliários no Líbano.

O líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, reagiu no domingo dizendo que vai “esperar para ver por que a Arábia Saudita obrigou o chefe de governo a renunciar”.

Na impressionante lista dos expurgados do regime estão incluídos os príncipes Miteb bin Abdullah, chefe da Guarda Nacional Saudita, uma força de elite; Alwaleed bin Talal, bilionário acionista do Twitter, Lyft, Euro Disney e Twentieth Century Fox; e Turki bin Abdullah, ex-governador da província de Riad.

Entre os empresários e executivos detidos, estão Bakr Bin Laden, herdeiro do Grupo Bin Laden, fundado pelo pai de Osama, o líder da Al-Qaeda; o bilionário Waleed Bin Tala, dono do grupo The Kingdom Holding; Waleed Ibrahim, proprietário da empresa de comunicação MBC; Saud al-Dawish, ex-CEO da Saudi Telecom; e Khaled al-Mulhem, ex-diretor-geral da Saudi Arabian Airlines.

Os funcionários do governo incluem Adel Faqih, ministro da Economia e do Planejamento; Khaled al-Tuwaijri, ex-presidente da Corte Real; Saud al-Tobaishi, chefe do Cerimonial Real; Omer Dabbagh, ex-presidente da Autoridade Geral de Investimentos; Ibrahim al-Assaf, ex-ministro das Finanças.

Modernização com que intuito?

Na terça-feira, em nova investida, bancos sauditas congelaram contas de 1.200 pessoas e empresas acusadas de corrupção. A amplitude das ações sugere a capilaridade da corrupção no reino. Mas até aí, não há uma grande novidade. Desde a sua fundação, em 1932, a Arábia Saudita é gerida como uma rica empresa familiar, na qual todos os “príncipes” se locupletam para apaziguar os conflitos — que facilmente acabam em sangue. Funcionários e empresários dançam conforme a música.

A novidade está no ímpeto “moralizador” do rei Salman e, principalmente, de seu herdeiro, cuja marca “modernizadora” já vem sendo impressa claramente nos últimos meses. MBS está por trás da recente permissão para mulheres dirigirem e da decisão de abrir o capital da Aramco, a gigante estatal controladora do petróleo saudita, que seria a maior empresa aberta do planeta com anos luz de vantagem sobre qualquer concorrente.

A grande pergunta que todos se fazem é: quanto tudo isso tem de modernizador e moralizador realmente, e quanto de uma cortina de fumaça para justificar a eliminação de rivais na disputa pelo poder absoluto.

“Os céticos estão chamando isso de um jogo de poder, mas na verdade é uma mensagem ao povo de que uma era de indulgência da elite está chegando ao fim”, tuitou Ali Shihabi, diretor da Fundação Arábia, de Washington, próxima à monarquia. É a visão que o regime deseja transmitir.

“Observadores bem informados da política interna saudita apontam para as muitas prisões de clérigos e intelectuais importantes em meados do ano como sinal das tensões dentro do reino”, disse o pesquisador Bruce Riedel, da Brookings Institution, de Washington, segundo o jornal The Washington Post.

O regime saudita costuma abrigar e patrocinar líderes religiosos radicais para difundir em seus respectivos países a leitura extremista do Alcorão, expressa na seita wahabita, cultuada no país. Eles acabam vinculando-se a setores do governo.

“Não há garantia de que quando o pai de MBS morrer ou abdicar a sucessão será suave”, continuou Riedel. “A última rodada de prisões só reforça a sensação de que o debate da sucessão é mais difícil do que o rei e seu filho gostariam.”

Stéphane Lacroix, professor da Sciences Po de Paris e autor do livro “Despertar do Islã: a política da divisão religiosa na Arábia Saudita contemporânea”, vai mais longe: “Mohammed bin Salman quer destruir o jogo de freios e contrapesos que havia caracterizado a Arábia Saudita nas últimas décadas. Nada de feudos que pudessem contrapor-se a suas decisões”.

Ele e seu pai têm se sentido mais poderosos desde que o presidente Donald Trump os honrou com uma visita a Riad em sua primeira viagem internacional, em maio. Trump prometeu uma reaproximação quase incondicional da Arábia Saudita, que havia se distanciado do governo de Barack Obama, sobretudo por causa do acordo nuclear com o Irã.

As juras de amor foram tão intensas que o rei Salman se sentiu à vontade para dar um passo que havia muito pretendia dar: declarar um bloqueio diplomático e econômico contra seu vizinho Catar, sob acusação de apoiar o terrorismo e de ligações com o Irã. Foi seguido pelos outros membros do Conselho de Cooperação do Golfo e pelo Egito.

Os expurgos internos são o equivalente doméstico desse movimento externo: o isolamento dos rivais. Essas coisas não costumam terminar muito bem nessa região do mundo, por mais comuns que sejam.

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