Rádio e televisão modificam a visão das coisas no minúsculo vilarejo de 80 casas e 2 mil anos (ou serão 4 mil?)
SENJ – A tarde fria cai sobre o vilarejo de 80 casas muito antigas, ao pé da Cordilheira Barghan, 85 quilômetros a noroeste de Teerã. Os velhos moradores conversam sentados em tapetes na beira do Senj, um rio raso e pedregoso de águas azuis prateadas, que dá nome ao povoado. Ninguém sabe dizer ao certo há quanto tempo o vilarejo existe. “Dois mil anos”, diz um; “quatro mil”, arrisca outro.
O que todos sabem é que os avós de seus avós nasceram ali. E que a mesquita, que só recebe um mulá nas celebrações do Ramadã, o mês sagrado muçulmano, ocupa o lugar onde, num passado longíquo, havia um templo zoroástrico, a religião dos persas antes da conquista árabe do século 7.º. Como seus ancestrais, os moradores de Senj vivem do pastoreio de cabras e ovelhas e do cultivo de nozes, maçãs e cerejas, e moram em casas de adobe branco da argila do lugar.
Ao contrário do que parece, Senj não parou no tempo.
O progresso, na visão da maioria, começou a chegar com a Revolução Islâmica de 1979. Há cerca de 20 anos, foi aberta a sinuosa estrada sobre o penhasco, ligando Senj às outras artérias que desembocam na rodovia para Teerã. Há cinco ou seis anos, chegou a eletricidade, que aposentou as lamparinas de querosene e trouxe o rádio e a televisão. “A vida tem mudado muito”, atesta Mussa Bastani, de 51 anos. “Os programas de rádio e TV modificam nossa visão das coisas.”
Na geração de seus pais, o marido não chamava a mulher pelo nome, e a voz dela não podia ser ouvida, na frente de visitas. Quando ainda não tinham filhos, o marido chamava a mulher com um “Escuta!”; depois dos filhos, com “Mãe de fulano (ou fulana)!”. Mussa e seu primo Shir Mohamad tiveram seus casamentos arranjados pelos pais. “Nossos filhos escolheram as próprias esposas, com nosso consentimento”, compara Shir, de 55 anos.
Antes da Revolução Islâmica, na zona rural, as famílias já se impunham o hejab, a norma islâmica que obriga as mulheres a tampar todas as partes do corpo, incluindo os cabelos. “Hoje em dia, os jovens já não querem saber do hejab”, observa Shir. Longe dos controles da polícia das grandes cidades, as moças iranianas se sentem mais à vontade no campo para deixar os cabelos à mostra, numa inversão que dá à zona rural uma aparência menos austera do que a urbana.
É como se os camponeses do Irã, ou pelo menos os de algumas regiões, já tivessem ultrapassado a Revolução, na sua esfera moral. E agora anseiam também por mais, no plano material.
“Fomos para as ruas de Karaj (a 50 quilômetros de Senj) protestar a favor da Revolução”, contam os primos Mussa e Shir Mohamed. “A gente do imam Khomeini prometia coisas boas para nós, como nos dar o dinheiro do petróleo, construir estradas e trazer eletricidade.” Com a Revolução, o Irã se urbanizou drasticamente, invertendo a relação de um terço de população urbana para menos de um terço de população rural. Não só pela urbanização da zona rural, mas pelos benefícios aos imigrantes do êxodo rural, como moradia, alimentação e transporte.
“O presidente Mahmoud Ahmadinejad (eleito no ano passado) prometeu reconstruir os vilarejos, abrir uma estrada para o norte de Teerã e aumentar os salários dos nossos filhos que trabalham nas fábricas”, diz Shir Mohamad. “Ainda estamos esperando para ver o que vai acontecer. Os políticos não ouvem o que dizemos.” Abdullah Hosseini, de 65 anos, também está cético: “Ahmadinejad está dando nosso dinheiro para os iraquianos, afegãos e palestinos, não para nós”, diz ele. Ao que Hobatollah Bastani, de 73 anos, contesta: “Tenho fé de que o presidente vai cumprir suas promessas. Só precisamos que ele asfalte a estrada. O resto, pedimos a Deus.”
Hosseini, o mais crítico, valoriza o fato de o presidente anterior, o reformista moderado Mohamad Khatami, ter dado mais “liberdade” para o povo. “Mas na economia ele não conseguiu fazer nada.” Hosseini questiona também os benefícios da Revolução. “Na época do xá (Reza Pahlevi) vivíamos melhor”, diz ele. “Nosso dinheiro valia mais.” Seifollah Bastani, de 68 anos, discorda: “Antes da Revolução, não faziam nada para nós. Estamos satisfeitos com esse governo.”
Hosseini garante que a estrada de acesso ao lugarejo onde vive foi construída por um francês chamado Schneider, que veio, antes da Revolução, explorar uma mina de urânio numa montanha a uma hora de carro de Senj. Hosseini trabalhava para Schneider, que retirou “muito urânio” da mina, numa joint venture com o governo do xá, que firmou acordos nucleares com os EUA e a França em meados dos anos 70, cancelados depois da Revolução.
Se os moradores de Senj divergem sobre o passado, concordam sobre grandes temas do presente. “A energia nuclear é necessária”, diz Hosseini. “Não podemos desperdiçar nossos recursos. Também deveríamos aproveitar o potencial hidrelétrico deste rio.”
E quanto a uma possível reação militar dos EUA? “Eles apoiaram o Iraque na guerra (1980-88), quando o Irã praticamente não tinha armas, e não conseguiram fazer nada”, lembra Seifollah. “Agora, estamos muito poderosos, e vão conseguir menos ainda. Se eles têm aviões, nós também temos. Um povo que tem fé, que crê no martírio, pode enfrentar qualquer um.” Seu primo Hobatollah concorda: “Não temos medo de avião, de tanque, de nada.”
Os sentimentos dos bravos moradores de Senj são parecidos aos de Teerã e possivelmente de todas as partes do Irã. Independentemente de defeitos e virtudes do regime fundamentalista e do governo Ahmadinejad, eles não aceitam que estrangeiros se metam na sua vida.
Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.