Yussuf Mardani, líder de comunidade religiosa no interior do Irã, contesta interpretação oficial do Islã
KARAJ – A fachada e o portão de acesso do Templo Husseinieh de Karaj, 35 quilômetros a oeste de Teerã, dão a impressão de que se está entrando numa pequena casa. Depois de deixar os sapatos na recepção, no entanto, o visitante ganha um imenso salão de mais de mil metros quadrados, onde cerca de mil homens se sentam sobre tapetes, com as pernas cruzadas. As mulheres ocupam um recinto ao lado, também equipado com caixas de som.
Terminada a leitura de textos do maulana Sultan Ali Shasha Gonabadi, um autor sufista, o guia do grupo dedica-se a interpretar suas mensagens. Em lugar da retórica típica dos sermões, Yussuf Mardani, o líder dos dervishes de Karaj, fala com a voz baixa, como se estivesse conversando. Os fiéis o fitam em silêncio. Depois do sermão, e das preces em versos do Alcorão, Mardani se recolhe a sua casa, no fundo do templo, e recebe o Estado para a entrevista que segue.
Nela, Mardani explica as visões de uma das seitas mais místicas e secretas do mundo muçulmano. E contesta o pilar da teocracia iraniana: a mistura de política e religião. Na conversa de uma hora, o guia, de 70 anos, também diz que os atentados suicidas não podem ser aceitos como martírio, e fala da perseguição a seu grupo no Irã.
O Islã foi uma religião de conquista. É válido impor os seus preceitos?
Não. O ser humano deve buscar o que quer. O Alcorão diz claramente que o homem é livre. Religião não pode ser uma obrigação.
Por outro lado, o Islã procura dar conta de todos os aspectos da vida. A mescla entre religião e Estado é legítima?
Governos não podem exercer um domínio islâmico. O Islã tem as suas próprias leis e regras. Há uma separação muito clara entre o que o Islã diz e o que qualquer governo diz. Há uma grande diferença entre os verdadeiros teólogos muçulmanos e aqueles que fingem sê-lo. Todas as religiões são verdadeiras. Zoroastro, Moisés, Jesus, Maomé, todos trouxeram a mesma mensagem. Todos foram designados por Deus.
O que torna alguém um shahid (mártir)?
Shahid significa aquele que vê a aparição de Deus. Não necessariamente pela morte física. Ele abandona voluntariamente todos os seus desejos, seus interesses. O shahid não é dono de si mesmo. Tudo o que faz é por vontade de Deus.
Ele pode matar?
Se Deus quiser que ele mate, ele matará.
Então, como diferenciar um mártir de um assassino?
A diferença é que o shahid vê a essência de Deus, que é certa, que é a luz da terra e do céu. Um criminoso age segundo seus próprios desejos, não segundo os desejos de Deus.
O mártir pode se matar para matar outras pessoas, numa situação de confronto?
Quem vai para a guerra e se suicida não é um shahid. Isso não é aceitável em nenhuma hipótese.
Essas idéias vão de encontro com as idéias do regime iraniano. Vocês enfrentam muitas pressões por causa delas?
Enfrentamos pressões extremas dos políticos, chamados de “clero”. A grande maioria das pessoas não nos entende. São ignorantes. Só estão interessados em si mesmos. Querem governar, forçar as pessoas a seguir o caminho que eles querem, para tirar vantagem disso. Em todos os tempos, em todos os países, políticos têm matado, torturado e prendido pessoas como Jesus, como os sufistas.
Quantos vocês são?
Não contamos. Não é importante para nós. Quem quer guerrear é que recruta pessoas. Não precisamos de membros. Precisamos de liberdade e de paz.
Que tipo de problemas vocês enfrentam?
Não tenho permissão para sair da Província de Teerã. Várias pessoas do nosso grupo foram presas e torturadas, incluindo um filho e uma filha meus, no fim dos anos 80. É preciso dizer que (o aiatolá Ruhollah) Khomeini (líder da Revolução Islâmica de 1979) tinha muito respeito por nós. Em seu livro Interpretação da Sura Hamd, ele cita o maulana Sultan Ali Shasha Gonabadi. Depois que escreveu esse livro, Khomeini foi forçado a silenciar.
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