Violência indiscriminada e desprezo pelos civis marcam campanha no Iraque, na visão dos próprios militares
São dez homens ao todo, com armamento variado, de fuzis-metralhadoras a lança-granadas apoiados sobre os ombros. Cinco esperam de fora. Cinco entram, derrubando a porta da casa com um pontapé. Normalmente, as batidas são feitas entre meia-noite e 5 horas, para pegar as pessoas dormindo. Os soldados iluminam o interior com suas lanternas fixas nos capacetes. Procuram o homem da casa. Arrancam-no da cama, na frente de sua mulher, e o encostam contra a parede. Os soldados percorrem os quartos e juntam a família num recinto. Destroem os móveis, em busca de armas. Tudo que está na geladeira e nas gavetas é espalhado no chão.
Se algo considerado suspeito é encontrado, o pai de família e os rapazes em idade militar são levados embora e presos indefinidamente, dando início a um calvário dos parentes pelas prisões, em busca de informação.
Mas, embora haja 60 mil iraquianos presos, por razões como estar usando roupa árabe ou calçando coturno, é raro que algo seja encontrado. Simplesmente os militares americanos dão as costas e vão embora, deixando a casa como se um furacão tivesse passado por ela. “Então, você acabou de humilhar esse homem na frente de sua família, de aterrorizá-la toda e de destruir sua casa. Daí você vai para a próxima porta e faz a mesma coisa em uma centena de lares”, conclui o sargento John Bruhns, que estima ter participado de mil batidas como essa, em Bagdá e Abu Ghraib.
Bruhns faz parte de um grupo de 50 veteranos da guerra do Iraque, ouvidos por The Nation, a mais tradicional revista de esquerda dos Estados Unidos, em entrevistas gravadas, com as fontes identificadas e checadas. Em 27 páginas de texto corrido, com base em relatos colhidos ao longo de 7 meses, The Nation faz uma descrição contundente de como os militares americanos lidam com os civis iraquianos – tendo como fonte os próprios militares americanos.
Vistas através desses relatos, as 601 mil mortes de civis iraquianos desde a invasão americana, em março de 2003 (31% com envolvimento direto das forças de coalizão, segundo contagem da revista médica britânica The Lancet) ganham um aspecto de gratuidade. O soldado Michael Harmon, da 4ª Divisão de Infantaria, em Al-Rashidiya, recorda uma vez em que um artefato improvisado explodiu perto de seu pelotão. “Os soldados simplesmente começaram a atirar para todos os lados, e uma menininha de 2 anos levou um tiro na perna. Ela ficou olhando para mim como se estivesse me perguntando: ‘Por que tem uma bala na minha perna?’”
A falta de informações e a natureza aleatória das operações americanas viraram piada entre os militares. “Lá vamos nós para a casa errada”, costumam brincar os soldados no início de uma batida, contou o sargento Jesus Bocanegra, da 4ª Divisão de Infantaria em Tikrit.
Sem informações sobre a cultura e a história do Iraque, sem falar a língua, com poucos intérpretes e nenhum contato com a população local a não ser em operações como a descrita acima, os militares americanos cultivam um desprezo pelos iraquianos que beira a “desumanização”, diminuindo ou anulando a culpa por matar indiscriminadamente, relataram vários veteranos.
“Muitos caras realmente defendiam a concepção de que, se eles não falam inglês e têm a pele mais escura, não são tão humanos como nós, e podemos fazer o que quisermos”, disse o soldado Josh Middleton, que serviu em Bagdá e em Mossul, na 82ª Divisão Aerotransportada. “Eles não são vistos como pessoas”, confirmou Harmon. “São apenas objetos.”
“A atitude geral era ‘um iraquiano morto é apenas um iraquiano morto’”, resumiu o soldado Jeff Englehart, da 3ª Brigada de Infantaria em Baquba. “A frustração por nossa incapacidade de descontar nos que nos atacam nos levou a simplesmente punir a população local que os apóia”, analisa o sargento Camilo Mejía, da 53ª Brigada de Infantaria, em Ramadi. O ódio se traduz em cenas grotescas, como soldados que se filmam simulando que estão comendo o cérebro de iraquianos que acabam de ser mortos, na frente de suas famílias.
Ao desprezo e ao ódio se somam regras de engajamento vagas, que o sargento Bobby Yen, do 222º Destacamento de Operações de Transmissão, resumiu assim: “Basicamente, tudo se reduz a autodefesa e a ‘antes eles do que você’.” O soldado Patrick Resta, que serviu na 1ª Divisão de Infantaria, em Jalula, lembra do supervisor dizendo ao pelotão: “As Convenções de Genebra não existem no Iraque.”
Combinados com as constantes ações dos insurgentes, esses sentimentos e essas regras resultaram em jovens militares nervosos, com um descomunal poder de fogo e licença para matar. Segundo os militares, as mortes de civis iraquianos não costumam ser sequer registradas em relatórios.
Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.