‘Aquele que bate de frente’

Desde menino, Saddam, cujo nome tem esse significado em árabe, aprendeu que o mundo é hostil e sobrevive quem elimina os inimigos

Se estiver vivo, Saddam Hussein terá sentido ontem o gosto mais amargo de toda sua vida. Ao contrário das outras duas guerras, dessa vez ele não pode forjar da derrota uma vitória fantasiosa. A imagem de sua estátua de bronze – erguida no ano passado para celebrar seu 65.º aniversário – sendo derrubada e destruída como um boneco de Judas foi a expressão gráfica de sua queda.

Numa guerra transmitida ao vivo, o simbólico inevitavelmente transcendeu o real. Daí a importância política de os iraquianos terem arrancado a cabeça de Saddam – representado por sua estátua -, fazendo-a rolar pelas ruas de Bagdá. É assim que têm terminado os governos no Iraque moderno, desde 1921.

A dinastia haxemita, que governara o país desde sua fundação, acabou em julho de 1958, quando uma pequena multidão arrastou o corpo mutilado do regente Abd al-Ilah pelas ruas de Bagdá, depois de um golpe liderado pelo general Abdel-Karim Kassem. O governo do general, por sua vez, terminou quatro anos depois, com seu cadáver crivado de balas exibido na televisão iraquiana.

Saddam não é precursor nem na brutalidade com que governou seu país nem no sangue que teve de ser derramado para que ele deixasse o poder. Muitos iraquianos que não gostam dele admitem que, para governar o Iraque, sempre foi preciso mostrar força. Ao primeiro sinal de fraqueza, o governante tende a ser destronado.

“Sei que há um monte de gente conspirando contra mim, e isso não é difícil de entender”, disse Saddam, logo depois de assumir a presidência, em 1979, em entrevista a Efraim Karsh, autor de Saddam Hussein, A Political Biography (1991, editora Brassey’s). “Afinal, nós não conquistamos o poder conspirando contra nossos antecessores? Mas sou muito mais esperto. Sei que estão conspirando para me matar antes que comecem a planejar. Isso me permite agarrá-los antes que tenham a mais remota chance de me atacar.”

Paranóico, obsessivo, impiedoso, Saddam foi, no sentido iraquiano, o governante perfeito. A eliminação de todas as ameaças – reais ou imaginárias – ao seu poder absoluto foi conduzida metódica e prontamente. Aos estrangeiros que especulassem sobre os limites da violência do regime, os iraquianos ilustravam: “Ele matou seus dois genros na frente de seus netos e filhas. O que você acha que ele faria com qualquer um de nós?”

Muito antes de se interessar pela política, Saddam – cujo nome, incomum, significa, em árabe, “aquele que bate de frente” – foi levado a acreditar que o mundo é um ambiente hostil no qual a sobrevivência depende da capacidade de eliminar os inimigos e de desconfiar dos que se apresentam como aliados.

Saddam nasceu em 1937 em Tikrit, histórico reduto de resistência contra invasores, que o historiador inglês Edward Gibbon (1737-94) chamou de “impenetrável fortaleza de árabes independentes”. O mesmo lugar em que, em 1138, nasceu Saladino, que comandou os muçulmanos na derrota aos cruzados e tomou Jerusalém dos cristãos.

Seu pai, Hussein al-Majid, um agricultor pobre, morreu antes de Saddam nascer. Sua mãe, Sabha, sem poder sustentá-lo, levou-o para a casa do irmão, Khairallah Talfah, que o criou e lhe deu a filha Sajidah para esposa.

Oficial do Exército e ardente nacionalista, Khairallah se envolveu em complô fracassado e foi preso. Aos dois anos, Saddam teve de voltar para a casa da mãe, que se casara com Hassan Ibrahim, irmão de seu pai.

Conhecido no vilarejo em que viviam como Hassan, o Mentiroso, o padrasto de Saddam era um homem brutal, que se divertia humilhando o sobrinho-enteado.

Um dos castigos – e passatempos – de Hassan era bater em Saddam com uma vara coberta de piche, fazendo-o dançar para se esquivar dos golpes. Hassan não colocou Saddam na escola e o mandava roubar. Acossado pelos meninos do vilarejo, que riam dele por não ter pai, Saddam andava com um pedaço de ferro para se defender.

Iniciação – Saddam tinha sete anos quando Khairallah saiu da prisão. Voltou, analfabeto, para a casa do tio, que finalmente o mandou para a escola, primeiro em Tikrit, depois, Bagdá. Aos 20, influenciado pelo tio e em contato com as teses do nacionalismo árabe efervescente, Saddam entrou para o Partido Baath (Renascença) em 1957.

Dois anos depois, ele participaria de uma emboscada para matar o general Kassem, então no poder. Saddam abriu fogo antes do combinado. O general escapou, ainda que gravemente ferido. A precipitação de Saddam custou caro ao Baath, que passou a ser duramente reprimido pelo regime militar. Mas para Saddam não foi ruim. Convertido num dos homens mais procurados do Iraque, ganhou instantânea notoriedade. Exilou-se primeiro na Síria, onde entrou em contato com os fundadores do Baath, e depois no Egito.

Anos depois, já no poder, Saddam recriaria seu papel no fracassado golpe. Num filme exaustivamente exibido no Iraque, ele aparece como um jovem idealista, disposto a se tornar mártir pela derrubada do odiado ditador. Na fuga, atravessa o deserto em seu cavalo, com uma pausa para extrair, com uma faca, a bala da própria carne.

A sorte de Saddam começou a virar em 1963, quando ele pôde voltar do exílio, depois de um golpe promovido pelo Partido Baath. O governo durou apenas nove meses, mas Saddam se instalou em Bagdá e conseguiu boa posição no partido, tornando-se secretário-geral e braço direito de seu líder, Ahmad Hassan al-Bakr, de Tikrit, primo e amigo íntimo de seu tio Khairallah.

Saddam teve papel protagonista no golpe militar que derrubou o presidente Abd al-Rahman Aref e alçou Al-Bakr ao poder, em julho de 1968. Revólver em punho, rendeu o primeiro-ministro Abd al-Razzaq Nayif e lhe comunicou o fim do governo. Ele assumiu o comando da segurança do presidente Al-Bakr, que logo percebeu que não estava sendo protegido, mas aprisionado pelos fedayn, jovens órfãos e pobres recrutados por Saddam, a quem tudo deviam. No dia 11 de julho de 1979, numa sessão a portas fechadas, o Conselho do Comando Revolucionário decidiu “liberar” Al-Bakr de suas funções e nomear Saddam presidente.

A medida foi precedida e seguida de expurgos sistemáticos dentro do Baath. Na filmagem de um congresso do partido, nessa época, líderes não afinados com Saddam são chamados um a um. Levantam-se e caminham, de cabeça baixa, para a saída do auditório. Em seguida, seriam executados. Começava a era Saddam.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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