Exército iraquiano deixou província petrolífera, ocupada pelos peshmergas
ERBIL – A ofensiva do Estado Islâmico (EI) deve ter uma consequência muito mais importante para o Iraque do que a espalhafatosa proclamação de um “califado” no norte do país. Uma vez o EI rechaçado de volta para a Síria ou para áreas desertas da fronteira, é muito provável que o conflito resulte na proclamação da independência do Curdistão. Isso terá consequências avassaladoras para a economia iraquiana. Dependendo da conduta do próximo governo em Bagdá, em fase de formação, pode levar também a uma segunda divisão do Iraque, entre as províncias de maiorias sunita e xiita.
A ameaça jihadista ofereceu uma oportunidade extraordinária à causa da independência curda. O Exército iraquiano abandonou Kirkuk – assim como todo o norte do país -, a principal província de petróleo do Curdistão, abrindo caminho para os peshmergas, os soldados curdos, tomarem a cidade, sob o pretexto de evitar que caísse nas mãos do EI.
O vice-primeiro-ministro curdo do Iraque, Rowsch Shaways, disse ao Estado que os peshmergas ficarão em Kirkuk até que sua população – de ampla maioria curda – decida sobre seu status final em um referendo. Era uma antiga reivindicação dos curdos, jamais ouvida por Bagdá.
A necessidade de conter o EI leva agora americanos e europeus a fornecer equipamentos militares aos peshmergas – outra antiga exigência curda, jamais atendida pelo governo central, que se recusava a cumprir a Constituição, segundo Shaways, que prevê a destinação de recursos do orçamento da defesa para as forças armadas do Curdistão.
À pergunta sobre se o conflito resultará na independência curda, Shaways foi cauteloso: “Se não for implementado um regime baseado no equilíbrio entre os três componentes (xiitas, sunitas e curdos), que têm de estar juntos para governar o Iraque em todas as esferas – segurança, administração -, em uma verdadeira parceria, respeitando os direitos uns dos outros, com certeza o povo do Curdistão buscará outras soluções”.
Mas o desejo da liderança curda – assim como o de muitos cidadãos comuns – é bastante claro: “Quero um Estado curdo hoje, não ontem”, disse ao Estado Mansur Barzani. Filho do presidente do Curdistão, Massud Barzani, ele é diretor de Segurança e de Inteligência da região e comandou a retomada da Represa de Mossul, essa semana.
Antes da ocupação pelo EI, que interrompeu a produção de petróleo, o Curdistão produzia 400 mil barris de petróleo por dia (b/d), enquanto que os campos do sul do Iraque, de maioria xiita, produzem 3,4 milhões b/d. Mas, contando com Kirkuk – e com a expulsão do EI -, a previsão é a de que a produção do Curdistão se eleve para 1,5 milhão b/d no ano que vem.
Igualmente importante é a posição geográfica do Curdistão, entre a Turquia e o Iraque. A Turquia exporta anualmente cerca de US$ 21 bilhões em produtos para o Iraque, e os fornecedores alternativos, os vizinhos Irã, Jordânia e Síria, não são capazes de suprir essa demanda, observa o economista Abdul Rahman al-Mashhadani, professor da Universidade de Mustansiriyah, em Bagdá.
Além disso, acrescenta o economista, o Iraque “se enfraquecerá geopoliticamente”. O Curdistão “controlará a vazão do Rio Tigre”, o mais importante do país, já que os curdos tomaram o controle da Represa de Mossul. “As próximas guerras serão por água, não por petróleo”, lembra o professor, citando um lugar-comum que no árido Oriente Médio ganha um tom a mais de dramaticidade. “As consequências de um Curdistão independente serão sombrias para o Iraque.”
Do ponto de vista político, até duas semanas atrás, a proclamação de um Estado curdo “poderia ter compelido os sunitas a pedir sua independência, se (o primeiro-ministro Nuri) al-Maliki ainda estivesse no poder”, analisa Mashhadani, falando pelo telefone, de Bagdá. Com a designação do primeiro-ministro interino Haidar al-Abadi, “a situação está calma, os sunitas estão esperando os resultados, mas acreditam que o novo governo possa resolver muitos problemas”.
SEGUNDA RETRANCA PODE COMEÇAR AQUI
A Turquia, que se afirma como potência regional, não se oporia a um Estado curdo no Iraque, avalia Sahin Alpay, cientista político da Bahcesehir University, em Istambul. “Desde 2008 Ancara reverteu sua política e tem construído relações cada dia mais cordiais com Barzani, na expectativa do petróleo curdo e também de ajuda para firmar a paz com o PKK”, explicou Alpay, referindo-se à guerrilha curda na Turquia.
O Estado encontrou uma base do PKK em Mahmur, onde os curdos da Turquia ajudaram a expulsar o EI. De sua parte, refugiados da minoria yazidis contaram que o PKK os resgatou nas montanhas de Sinjar, levou-os para a Síria e de volta para o Iraque. Toda essa mobilidade do PKK seria impraticável sem a tolerância turca.
O primeiro-ministro Recep Tayyip Erdogan, que assumirá a presidência dia 28, “tem-se engajado em cautelosas e lentas negociações com o PKK desde 2006”, disse Alpay, em entrevista por email. A guerrilha declarou cessar-fogo em março do ano passado. “Atualmente, apesar de escaramuças esporádicas, o processo de paz parece estar nos trilhos.”
“O perigo imposto pelo EI levou Ancara a se colocar ao lado do PKK e dos curdos em geral”, analisa o professor turco. Há uma ironia aqui: a Turquia ajudou discretamente o EI, proporcionando-lhe livre movimentação na fronteira, enquanto ele parecia ameaçar o regime de Bashar Assad na Síria. Ao invadir Mossul, o EI “retribuiu” sequestrando 49 funcionários do consulado turco, pondo fim à improvável aliança entre o governo islâmico moderado de Erdogan e a leitura implacável do Alcorão feita pelo grupo. “Ancara tem se declarado a favor da integridade do Iraque, mas não se oporia à independência do Curdistão iraquiano, se o Iraque não puder se manter unido”, avalia Alpay.
A divisão do Iraque é uma discussão de mais de dez anos, desde que os Estados Unidos o invadiram, em 2003, pondo fim ao regime totalitário de Saddam Hussein, que mantinha o país unido à força. Mas a divisão – seja em dois ou em três países – nunca pareceu tão real quanto hoje.
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