Exilados na Jordânia, eles se angustiam com perspectiva de devastação sem precedentes
AMÃ – A noite cai prematuramente na sacada do Café Central. A brisa seca do inverno entra timidamente pela porta veneziana escancarada, sem vencer a densa fumaça do narguilé. É fim de tarde de sexta-feira, o dia do descanso muçulmano, e esse reduto dos intelectuais iraquianos em Amã está lotado. Entre um trago e outro do tabaco mesclado com essências de frutas, um lance no gamão ou no jogo de cartas, escritores, críticos literários e jornalistas banidos ou auto-exilados trocam idéias sobre seu destino depois da hecatombe iminente.
“A questão iraquiana é a mesma de Hamlet: ser ou não ser”, filosofa Muslim al-Taam, mestre em literatura inglesa pela Universidade de Bagdá. “O regime em Bagdá é o pior do mundo, e a maioria dos iraquianos anseia por uma solução moral, não uma guerra.” Said al-Gamini, crítico e tradutor, que compartilha a mesa da sacada com Al-Taam, ironiza: “Estão esperando a intervenção dos bárbaros.” Quase maltrapilhos, os exilados iraquianos, com status de refugiados, vivendo de colaborações em jornais, conservam o orgulho que emana do chamado berço da civilização.
“Sempre esperei que o apoio partisse dos europeus, e não aceito que venha dos americanos, porque eles não são civilizados”, ataca, noutra mesa, um contista, que pede para não ter o nome publicado, porque sua família ficou no Iraque. “Pois eu não estou preocupado se a ajuda vem dos EUA, da Rússia ou de Israel. Desde que seja para mudar o regime e pôr fim ao sofrimento, não importa”, discorda o poeta Hatem Abdel-Hadi, autor, entre outros, de O Vagão da Guerra, lançado em 1995 no Iraque.
Por mais que queiram ver Saddam Hussein fora do poder, esses intelectuais se angustiam com a perspectiva de devastação sem precedentes. “Temos de tirar Saddam de um jeito ou de outro, mas evitando um desastre maior para nosso país”, adverte Al-Taam. Ele e outros intelectuais acham que, em vez de guerra, os EUA e outras democracias deveriam apoiar as forças de resistência ao regime dentro do Iraque, tão desconhecidas fora do país quanto, dentro dele, a oposição iraquiana no exílio com a qual os americanos parecem contar para substituir Saddam.
Al-Taam e Al-Gamini, ambos com 45 anos, lembram que, em 1991, no rastro da guerra para expulsar as tropas iraquianas do Kuwait, houve um levante da população do sul, predominantemente xiita. Os revoltosos, segundo eles, chegaram a 40 quilômetros de Bagdá, mas foram sufocados pelos americanos, que, assim como as monarquias aliadas do Golfo, temiam a instalação de uma república fundamentalista de inspiração iraniana no Iraque.
Para Abdel-Hadi, se os franceses, alemães e russos dessem um passo adiante e declarassem que não são apenas contra a guerra, mas também contra o regime iraquiano, Saddam cairia. “Não seria necessária uma ação militar, porque a força de Saddam não vem de seu povo, que não o apóia, mas de outros árabes, muçulmanos e europeus”, julga o poeta. “É o momento de dizer: ‘Não queremos nem guerra nem Saddam.'” “Claro que é um dilema”, reconhece Abdel-Hadi, que escreve para o jornal Az-Zaman, de Londres, especializado em cultura iraquiana. “Estamos fartos de guerra. Mas a vejo como a única maneira de nos livrarmos de Saddam.”
O jornalista Ali Hammet, de 37 anos, que veio há apenas três meses para a Jordânia com a mulher, professora de literatura francesa na Universidade Filadelifia, em Bagdá, nutre desconfianças profundas. “Não se pode escolher entre o despotismo e o imperialismo”, diz Hammet, autor de O Inverno da Família, que narra o declínio de uma família aristocrata por causa do embargo econômico imposto ao Iraque há 13 anos, depois da invasão do Kuwait.
Depois de Saddam, o povo iraquiano estaria pronto para algo que se assemelhasse a uma democracia, por exemplo? “Teoricamente, é possível, mas, na prática, temos nossas dúvidas”, respondem Al-Taam, há sete anos no exílio, e Al-Gamini, há nove. “Há o iraquiano urbano e o beduíno. Mesmo nas cidades, a maioria das pessoas conserva suas raízes rurais de beduíno.” E, para essa grande massa de pessoas simples, um presidente tem de demonstrar força. “Os beduínos não acreditam em nenhum governo. Eles apóiam um quando ele parece forte. Ao menor sinal de fraqueza, eles se levantam contra ele.”
“Somos uma minoria, mas tentaremos libertar a mente dessa maioria, prepará-la para os próximos passos”, diz o romancista Jamal al-Bustani, formado em psicologia na Universidade de Bagdá. “Eles não estão acostumados a ter direitos e será uma tarefa que levará muito tempo, mas talvez não seja impossível. Seja como for, qualquer mudança será para melhor.” Como tem aparecido muito em TVs de países europeus e muçulmanos, Al-Bustani recebeu convite do governo iraquiano para voltar. “Dizem que me dariam muitas coisas, mas, na verdade, me enforcariam”, acredita o romancista.
A desilusão com os americanos em 1991, acredita Al-Taam, aguçou a desconfiança dessa gente simples com os políticos. “A maioria das pessoas no Iraque não confia em nenhum processo ou grupo político e acha que a política é feita de palavras bonitas, mas não de ações para ajudar o povo.”
Abdel-Hadi é mais otimista. “Seis mil anos atrás, no tempo de Nabucodonosor, o Parlamento tinha três Casas: dos Guerreiros, dos Jovens e o Senado”, lembra, evocando mais uma vez o orgulho babilônico. “Democracia é como nadar. Aprende-se praticando.”
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