Relojoeiro descreve encontro com radicais islâmicos
MAHMUR, Iraque – Hussein Hainy Ahmed adormeceu enquanto assistia um filme na TV e esperava a hora da oração vespertina. O ruído alto do ventilador abafou os barulhos da rua. Levantou, olhou no relógio, e puxou o tapete para rezar em seu quarto mesmo. De repente, ouviu alguém chamando no alto-falante para a oração. “Nosso mulá tinha ido embora havia dois dias”, conta o relojoeiro e eletricista de 62 anos. “Pensei: deve ser algum fiel chamando.” Largou o tapete e saiu de casa.
Na rua, encontrou militares e caminhonetes com canhões montados sobre as carroceiras. Pensou que fossem peshmergas, os soldados curdos. “Eu achava que os peshmergas iam nos proteger, e nada aconteceria em Mahmur.” Um dos militares se aproximou e, falando em árabe, perguntou quem ele era. Foi então que entendeu que Mahmur, cidade de 28 mil habitantes 40 km ao sul de Erbil, capital do Curdistão, tinha sido tomada pelo Estado Islâmico. Todos os moradores tinham fugido naquele dia 7. Menos Ahmed. “Não sou ninguém”, respondeu.
“É do grupo de Massud?”, insistiu o homem, referindo-se ao líder curdo Massud Barzani. “Sou do grupo de Deus”, disse Ahmed. Para provar que era civil, levou o combatente a sua relojoaria, e abriu a porta com a chave que trazia no bolso. Foram então para a mesquita. Dentro, havia fuzis, metralhadoras artilhadas e foguetes portáteis. E uma fila de 25 homens. “Eles vestiam as roupas usadas pelos paquistaneses e afegãos”, lembra Ahmed, referindo-se às batas e calças largas, chamadas de shalwar kamiz.
Ao final da oração, o homem que estava a seu lado abraçou e beijou o mulá. Sem saber o que fazer para agradar, Ahmed repetiu o gesto. O mulá lhe perguntou quem ele era, e responderam que era o único morador que havia ficado em Mahmur. “Não me perguntaram se eu era árabe ou curdo. Sendo muçulmano, tudo bem.” De acordo com o vice-prefeito de Mahmur, Rizgar Ismail, 35% dos moradores da cidade são árabes, e os restantes, curdos, mas ambos os grupos fugiram igualmente, diante da chegada do EI.
O mulá avisou Ahmed de que, se alguma casa ou loja fosse saqueada, ele seria responsabilizado, e sua mão seria cortada. “Se souber de alguém, do nosso grupo ou não, que tenha roubado algo, me avise”, ordenou o mulá. Segundo Ahmed, a única loja invadida foi a de fardas e objetos militares, no mercado de Mahmur. Sempre falando em árabe, o mulá ainda lhe recomendou: “Meu filho, não saia andando por aí. Nós aqui o conhecemos. Mas outros não o conhecem”, referindo-se à possibilidade de ele cruzar com outros membros do Estado Islâmico (EI), e receber um tratamento menos amistoso.
Ele voltou para casa e não saiu mais. Ao final de três dias, ouviu pesado fogo de artilharia. Eram as forças curdas retomando Mahmur. No combate, o mercado e outras áreas da cidade ficaram destruídos. A cidade continua vazia. O EI recuou a apenas 5 km de Mahmur, voltando para Gayara, a cidade de onde lançou a ofensiva.
Ashad Hamad Ali, um peshmerga da reserva, de 61 anos, acusou os moradores árabes de Gayara de apoiar o EI. Durante um mês antes de avançar para Mahmur, os jihadistas esperaram na cidade, cortaram dois terços de seu abastecimento de água e coletaram informações, como a quantidade de armas e a distância até a montanha, disse Ali.
Quando os jihadistas finalmente avançaram, os peshmergas levaram as mulheres e crianças a 25 km de distância e voltaram para a montanha perto da cidade. Lá esperaram até que o Partido Democrático do Curdistão, de Barzani, enviou-lhes dois veículos blindados. Com ajuda dos guerrilheiros do PKK, da Turquia, partiram para a retomada da cidade. Só depois que expulsaram dos jihadistas, foi que aviões americanos os bombardearam, na saída da cidade, afirmaram os peshmergas.
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