Africanos que fugiram do Iraque para a Jordânia resistem a voltar a seus países, também em choque
RUWEISHED, Jordânia – O carpinteiro egípcio Mohamed Mohamed Sulayman tem o olhar distante, enquanto suas filhas brincam com outras crianças e voluntários do Crescente Vermelho. O passaporte egípcio do pai e das filhas de 13, 11 e 3 anos de idade permitiu que os quatro saíssem do Iraque; mas a mãe, iraquiana, teve de ficar em Bagdá.
“As repartições do governo estão fechadas ou destruídas. Não conseguimos os papéis para minha mulher sair”, conta Sulayman, que se mudou para o Iraque em 1985, atraído pelas oportunidades de trabalho que o país oferecia. “Quando voltarem a funcionar, se Deus quiser, minha mulher poderá sair de lá.” Quando o conflito começou, Sulayman estava de férias em sua cidade natal, Asyut. Voltou para buscar a família.
Ele e as filhas chegaram na quinta-feira à noite. O taxista cobrou US$ 200 para deixá-los na fronteira com a Jordânia – quase dez vezes o preço de antes de começar a guerra. “Não havia nenhum problema na estrada, apenas duas pontes atingidas e alguns carros incendiados”, descreveu o carpinteiro, com a naturalidade de quem já viveu duas guerras antes (Irã-Iraque, de 1980 a 88, e Guerra do Golfo, em 1991).
“Nunca mais voltarei a viver no Iraque”, promete. “Nem depois que a guerra acabar.” Desde o dia 18, chegaram do Iraque ao acampamento do Crescente Vermelho (o equivalente muçulmano da Cruz Vermelha) em Ruweished, a 73 quilômetros da fronteira, 579 estrangeiros – nem iraquianos nem jordanianos. Desses, 383 foram para seus países, restando 196 – dos quais, dez egípcios.
Sulayman tem um retorno amargo pela frente, mas pelo menos tem para onde voltar. O pedreiro Mohamed Abdullah deixou há 12 anos a cidade de Darfor, no oeste do Sudão, fugindo da guerra civil. Ostentando um boné com a bandeira americana que adquiriu em Bagdá anos atrás, Abdullah, de 41 anos, está entre os 66 sudaneses no acampamento que resistem a voltar a seu país. “Não quero sair do fogo e cair na frigideira”, explica o cabeleireiro Jumah Adam Jumah, que deixou Darfor em 1984. “Quero ir para qualquer país onde não haja guerra.” Sobre a natureza opressiva do regime de Saddam Hussein, o cabeleireiro pondera apenas que, “quando a situação é difícil, você tem de dar um jeito de se proteger”.
Jumah, que também chegou de Bagdá na quinta-feira, explica por que não há iraquianos cruzando a fronteira: “Eles gostariam de sair, mas o governo os forçou a ficar.” Uma das muitas ironias desta guerra é a inversão do fluxo de iraquianos. Segundo o governo jordaniano, 4.330 iraquianos haviam voltado para seu país entre os dias 16 e 25. Dois ônibus lotados de jovens iraquianos vindo de Irbil, cidade industrial ao norte da Jordânia, indicavam ontem à tarde que esse fluxo continua. Os iraquianos partem para se juntar a suas famílias neste momento difícil.
Enquanto isso, um segundo campo montado perto de Ruweished, para acolher refugiados iraquianos – vieram 500 mil só para a Jordânia em 1991 – continua vazio. A coerção do governo de Saddam, exemplificada pelo disparo de morteiros contra iraquianos que tentavam deixar Basra na sexta-feira, assume também outras formas: as taxas cobradas dos iraquianos que querem deixar o país, antes na casa dos US$ 100 a 200, também se multiplicaram por dez.
Funcionários das agências da ONU dão outras explicações para a falta de refugiados iraquianos: o risco de trafegar pelas estradas do país, onde a coalizão às vezes parece disposta a disparar contra tudo o que se move; como conseqüência, o custo proibitivo do transporte; e o fato de que as famílias têm reservas de mantimentos. Em 1991, os iraquianos também não deixaram seu país no início da guerra. No fim, eram 1,5 milhão de refugiados.
Espremido com sua mulher e cinco filhos na pequena tenda de náilon, enfrentando o vento frio e a poeira do deserto, Malual Agu é outro sudanês que se recusa a voltar a seu país – ao contrário de outros 310, que se convenceram depois de uma conversa com o embaixador do Sudão em Amã. Agu, motorista de caminhão, deixou tudo o que conseguiu construir ao longo de 19 anos em Bagdá. “Se meu apartamento ainda estiver de pé, depois da guerra, vou vendê-lo”, ri, amargamente. “Mas morar no Iraque, nunca mais.”
Dos 95 somalis que chegaram a Ruweished, apenas três haviam voltado para seus países até sexta-feira. “Vou ficar aqui e esperar para ver o que vai acontecer”, disse Abdel Karim, de 24 anos, estudante de administração de empresas na Universidade de Bagdá, que oferecia ensino de graça para jovens árabes. Seu colega Abdul Salam veio de Mogadiscio há menos de um ano, fugindo da intratável guerra civil que assola o país desde 1991. Mas já tem uma certeza: “Não sei para onde ir, só sei que não quero voltar para a Somália.”
A tarde cai no acampamento dos estrangeiros em Ruweished. Depois de dois dias de tempestades de areia, fez um tempo magnífico, de céu azul e um sol que não vence, mas atenua o vento gelado desse início de primavera no deserto da Jordânia. Alheios às discussões políticas, à indignação dos pacifistas e à fúria dos guerreiros, os emigrantes africanos olham para o que restou de seus sonhos de uma vida melhor no Iraque. E ajeitam os poucos pertences em suas tendas de náilon para enfrentar o frio implacável que a noite traz.
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