Religiosos xiitas tentam influenciar eleição iraquiana

Em sermão da sexta-feira, clérigos pedem votos abertamente pela primeira vez na campanha

BAGDÁ – A oração do meio-dia de ontem tinha todo o aspecto de um ritual religioso. Como se estivessem numa mesquita a céu aberto, cerca de 5 mil fiéis tiraram os sapatos e estenderam seus tapetes na Avenida El-Felah, na populosa região xiita de Sadr City, a nordeste de Bagdá. No púlpito montado de frente para a multidão, clérigos de túnicas brancas e turbantes pretos alternaram-se nos sermões, como em todas as sextas-feiras. Às vésperas das eleições parlamentares de amanhã, no entanto, sua pregação foi densamente eleitoral, entremeada de orações e de passagens da vida do Profeta Maomé e de seus descendentes.

Anunciando ter uma mensagem do clérigo xiita Moqtada al-Sadr, que estuda teologia em Qom, no Irã, o xeque Hazim al-Araji mandou os fiéis votarem na Aliança Nacional Iraquiana (INA), que abriga candidatos sadristas. Segundo jornalistas iraquianos que cobriam o evento, foi a primeira vez que os clérigos pediram votos de maneira tão direta numa cerimônia. Araji explicou que os eleitores deviam escolher o candidato respectivo da INA nos 80 distritos eleitorais em que eles se distribuem em Sadr City, para que a aliança não desperdice votos e eleja o maior número possível de deputados.

“Mulheres recrutadas pela INA andarão de casa em casa para orientar as eleitoras”, avisou Araji aos maridos, pais e irmãos acomodados na avenida. Um pequeno número de mulheres assistia à pregação separadas em um barracão. “Queremos que nossas mulheres sejam como Zeina”, pediu o clérigo, referindo-se à irmã do imam Hussein, neto de Maomé. Quando Hussein foi morto e sua cabeça exibida como a de um infiel pelos rivais na disputa pelo califado depois da morte de Maomé, Zeina encarregou-se de anunciar que ele era o neto do Profeta. O reconhecimento de Hussein e de seu pai Ali, também assassinado, como os herdeiros do califado, deu origem à seita xiita, numa cisão dos sunitas.

“Nunca pararemos de lutar contra a ocupação americana”, afirmou Araji. Ele explicou, no entanto, que há três tipos de resistência: a militar, ou jihadista (guerra santa), que deve ser conduzida por “profissionais” e na qual os fiéis não devem se meter; a “cultural”, contra os valores que eles defendem; e a política, por meio dos candidatos do partido eleitos no Parlamento. “Toda a campanha contra nós não nos fará esquecer Hussein e Sadr”, prometeu Araji, referindo-se tanto a Moqtada quanto a seu pai, Mohammed Sadiq, que também foi clérigo xiita e enfrentou o regime de Saddam Hussein. “Moqtada, minha vida lhe pertence”, gritava a multidão.

O orador anterior, o clérigo, Hareth el-Edari, protestou contra o suposto mandado de prisão contra Moqtada, já desmentido pelo primeiro-ministro Nuri al-Maliki. “Fazem isso para tentar nos provocar, para que tenhamos alguma reação violenta e eles possam dizer à mídia que somos terroristas”, interpretou Edari. Os sadristas tinham uma milícia chamada Exército Mehdi, dissolvida em 2008 depois de um confronto com o Exército iraquiano, a mando de Maliki. Desde então, passaram a concentrar-se na disputa política.

A pregação da sexta-feira em Sadr City foi o evento mais parecido com um comício na campanha eleitoral iraquiana, fortemente restrita por medidas de segurança que confinam os candidatos a encontros com líderes tribais em recintos fechados. Sadr City tem 2,9 milhões de eleitores – o mesmo que todo o restante de Bagdá.

“Todos vamos votar na lista da INA”, disse, antes da oração, o aposentado Abo Deaa al-Mubamudayi, de 60 anos, ex-funcionário do Ministério da Indústria. “São eles que podem conseguir empregos para os jovens, serviços públicos e segurança para todos”, assegurou. “Queremos que o governo mostre claramente para onde vai o dinheiro do petróleo.”

Al-Mubamudayi espera também que o próximo governo remova os muros de concreto e os bloqueios militares que circundam Sadr City. À pergunta sobre se as medidas de segurança não são consequência da violência sectária, fomentada por posições como as dos sadristas, Nama Ali al-Bidery, pedreiro aposentado de 94 anos, culpou os americanos: “Não havia conflito entre xiitas e sunitas antes da invasão.”

O gari Mohammed al-Lami, de 28 anos, acusou os militares americanos e iraquianos de fazer batidas à noite nas casas em Sadr City. Segundo Lami, os soldados iraquianos roubam dinheiro, celulares e comida das casas. “O Exército odeia os moradores de Sadr City.” Ele contou que um vizinho sadrista foi detido acusado de ser miliciano e, antes de ser solto por falta de provas, foi morto na prisão.

Lami, que tem um contrato temporário com a prefeitura, e cujo salário foi rebaixado de 350 mil dinares (US$ 300) para 200 mil (US$ 170), disse que o governo Maliki só oferece empregos para parentes de autoridades ou para quem paga propina para ser contratado – uma acusação frequente.

Já o ex-vice-ministro da Saúde Hakim al-Zamery, um membro da INA, que participou do governo antes de romper com Maliki, dava empregos para todos os que iam pedir, especialmente se fossem de Sadr City, comparou Lami. Ele também citou o exemplo da deputada Maha al-Dori, da aliança, que dá metade de seu salário para os pobres.

“Moqtada está dentro do meu coração”, resumiu Bidery, apontando para um dos cartazes com a foto do clérigo.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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