Sectarismo perde força em eleição que decidirá o futuro do Iraque

Xiitas e sunitas trocam políticos com retórica de confronto entre facções religiosas por partidos laicos e nacionais

BAGDÁ – O pastor Mustapha Hamid não tira os olhos de suas ovelhas enquanto conversa, sentado numa cadeira na calçada, numa rua de Adhamiya, bairro sunita no norte de Bagdá. “Votei no partido (sunita islâmico) Tawafuq nas eleições passadas”, recorda Hamid, de 36 anos, o lenço quadriculado vermelho e branco na cabeça, típico dos beduínos, contrastando com a barba cerrada. “Os partidos islâmicos não fizeram nada por nós. Eles só cuidam dos próprios interesses.” Hamid pretende votar hoje na aliança Al-Iraqiya, do ex-primeiro-ministro xiita Ayad Allawi.

A exemplo dele, muitos eleitores sunitas trocarão partidos sectários por alianças entre xiitas e sunitas seculares, que combatem o sectarismo religioso na política. “Deus queira que os conflitos sectários tenham acabado”, espera Adnan Ali Shumari, de 53 anos, dono de uma sorveteria no bairro. “Somos todos muçulmanos.” Até 2003, sua sorveteria, fundada há 52 anos pelo seu pai, fechava à 1 hora. Depois da guerra, por causa dos conflitos entre sunitas e xiitas, ela passou a fechar às 20 horas. Poucos se aventuram a sair de casa à noite. Shumari também votará em Allawi, que considera um “patriota”.

Além da violência, os iraquianos associam os islâmicos à corrupção e à incompetência no governo do primeiro-ministro xiita Nuri al-Maliki, apoiado por grupos sectários tanto sunitas quanto xiitas. “Com tanto dinheiro que entrou nesses anos, a única coisa que o governo fez por Adhamiya foi esta praça”, critica o engenheiro Thamer Hamid, de 44 anos, empregado numa fábrica estatal de baterias. “A corrupção corrói este país. A guerra sectária só beneficiou os partidos políticos. As pessoas comuns são os perdedores.” Hamid planejava votar em Maliki, mas, depois da onda de atentados dos últimos meses, decidiu-se por Allawi.

Sentado numa cadeira, Mohammed al-Agha observa o movimento na praça, com seu fuzil Kalashnikov no colo e sua farda camuflada. Al-Agha, de 29 anos, é guarda do Conselho Despertando, entidade formada por líderes tribais em todo o país que resistiram à presença da Al-Qaeda nos redutos sunitas. Al-Agha, de 29 anos, deu seu voto na eleição de dezembro de 2005 a Tareq al-Hashemi, vice-presidente do país e líder sectário sunita, e decepcionou-se: “Os islâmicos não trabalharam por nós, só por eles mesmos.”

A reação dos moradores de Adhamiya expressa a mudança de humor dos iraquianos, cansados de conflitos e frustrados com a lentidão dos progressos no país, cujos prédios e infra-estrutura continuam destruídos sete anos depois da guerra. Serviços básicos, como eletricidade, água e coleta de lixo funcionam precariamente. “Os iraquianos aprenderam com a experiência e agora querem mudança”, analisa Hazim al-Nuaimi, professor de ciência política da Universidade Mustansiriyah. “Os próprios partidos agora vêem o Iraque como um país só.”

No imenso bairro xiita de Sadr City, as milícias pró-iranianas inspiradas por clérigos como Moqtada al-Sadr, cujo clã dá nome à área (antes chamada Saddam City), depuseram em grande parte suas armas e entraram no jogo político, competindo pelo voto. Os sadristas e outras organizações xiitas uniram-se na Aliança Nacional Iraquiana (INA). Ao lado da Al-Iraqiya e da aliança Estado de Direito, de Maliki, a INA está entre os que devem conquistar mais cadeiras no Parlamento.

Para os xiitas, em geral, a escolha está entre a INA e Maliki, que lidera o partido Dawa, na sua origem islâmico xiita, mas convertido ao secularismo. “Allawi não tem chances aqui porque muitos pensam que ele é baathista, ou apoiado pelos americanos, e eles odeiam ambos”, explica Ali Hussein, dono de um pequeno supermercado em Sadr City. Os baathistas pertenciam ao partido de Saddam Hussein (Baath), que governou o Iraque de forma ditatorial entre 1979 e 2003, reprimindo a maioria xiita.

“O Exército Mehdi (milícia sadrista) perdeu muito apoio aqui, por causa dos conflitos, que deixaram muitos mortos”, analisa Hussein. “Maliki também perdeu, por causa dos atentados dos últimos meses e porque seu governo não atendeu às expectativas, mas temos de escolher entre ele e a INA”, completa Hussein, que pretende votar na Aliança por causa do que considera o mau desempenho do governo Maliki.

Já o motorista de táxi Sadiq Johi, de 36 anos, acha que o primeiro-ministro não tem culpa pelas falhas em seu governo. “Há muita corrupção, mas Maliki tem boa reputação. O problema são as pessoas que estão ao redor dele.” Em 2008, Maliki mandou as Forças Armadas suprimir O Exército Mehdi em Basra, no sul do país, e saiu fortalecido como líder nacional, apesar de sua origem islâmica.

O xiita Ghazi al-Khaziali, de 40 anos, dono de uma loja de roupas no centro de Bagdá, traz no corpo as marcas do conflito sectário. Ele era guarda-costas e foi ferido num atentado a bomba contra o ex-ministro da Educação Sami al-Mudafer em 2006. No mesmo ano, um irmão dele foi morto com um tiro no pescoço durante um conflito sectário. Outro já havia sido enforcado por ordem de Saddam Hussein em 1995. “Quero alguém que melhore nossa vida”, disse Khaziali, que vai votar em Allawi. “Mesmo se (o ex-primeiro-ministro israelense) Ariel Sharon viesse e me oferecesse 100 m² de terra, eu votaria nele.”

Eleitores mais sofisticados rejeitam até mesmo a divisão entre sunitas e xiitas, explorada politicamente a partir da queda de Saddam, pelos grupos que voltaram do exílio no Irã e nos países árabes, e por outros novos que se formaram sobre a plataforma religiosa. “Por que você me pergunta isso?”, reage Niam al-Qaseer, de 29 anos, aluna de mestrado em ecologia na Universidade de Bagdá, à pergunta sobre sua religião. “Não gosto disso, porque divide os iraquianos.” Niam votará em Allawi, precisamente porque “não mistura política com religião”. O sunita Zeid Akram, de 20 anos, estudante de engenharia, também é contra a divisão religiosa, e vai votar em Maliki: “O país está melhorando, e é preciso dar mais quatro anos a eles.”

O cientista político Hamid Fadhil pondera que a questão sectária ainda influenciará nas decisões dos iraquianos por muito tempo. Ele observa que os candidatos não perdem tempo afixando seus cartazes em bairros habitados por pessoas de religião diferente da sua. O que mudou é que os iraquianos estão cansados do uso político da religião para semear a violência entre eles.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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