Terrorismo, violência política e crime comum se somam a dificuldade de conseguir emprego e precariedade dos serviços básicos
BAGDÁ – O engenheiro Ghaith Saleh não é um simpatizante de Saddam Hussein nem da “insurgência” contra a ocupação americana. Foi funcionário durante um ano no Ministério da Eletricidade, de onde saiu em 2003 para trabalhar para o Exército americano, como comprador de material de escritório e equipamentos. Isso torna seu balanço mais contundente: “Teria sido melhor se nada disso tivesse acontecido. Vivíamos muito melhor na época de Saddam.”
Na penumbra da sala da casa de seus pais, que passa mais tempo sob blecaute do que com energia, Saleh explica: “Não estou dizendo que Saddam era um bom líder, mas agora temos outros tipos de ditadura – de violência, dificuldades e sofrimentos.” Saleh, de 37 anos, os tem vivido na carne.
Em junho de 2007, quando voltava de uma viagem de negócios a Tikrit, foi sequestrado na estrada por três homens num carro, com fuzis-metralhadoras AK-47 e pistolas Glock. O grupo, que não se identificou, exigiu US$ 120 mil de resgate, mas seu irmão conseguiu baixar para US$ 70 mil. “Nem pensei em chamar a polícia”, diz o irmão, Awl. “Ela poderia estar envolvida.”
Solto depois de três dias, Saleh ficou com medo de atrair novos sequestros, já que pagou depressa o resgate, e mudou-se com a família para a Síria, onde ficou durante oito meses. Em janeiro de 2008, com a melhora da segurança, voltou e foi trabalhar de novo para os militares americanos, dessa vez como intérprete. Há um ano, está desempregado.
“Para se conseguir um emprego no governo, é preciso ter boas relações, ou então subornar alguém”, diz o engenheiro. Funcionários do governo costumam cobrar entre US$ 1,5 mil e US$ 2 mil por uma vaga com salário de US$ 650.
Casado e com três filhos, Saleh teve de deixar a casa que alugava e ir morar com seus pais e dois irmãos – uma situação comum em Bagdá, onde há casas com mais de 20 pessoas morando juntas. Além da segurança, Saleh e muitos iraquianos lembram com saudade da cesta básica que Saddam distribuía para todas as famílias, independentemente de sua renda, a partir do embargo internacional de 1991. O atual governo mantém o programa, mas os iraquianos se queixam de que vêm muito menos produtos, e de muito pior qualidade.
Os serviços de saúde e educação também são muito criticados. Saleh conta que seu pai, de 62 anos, quase morreu de uma infecção viral no fígado, por falta de medicamentos e de médicos capacitados. A família o levou para se tratar no Líbano, onde sofreu uma cirurgia e ficou curado. “Para tratamentos mais sofisticados, como transplante de córnea ou cirurgia na retina, os pacientes têm de ser mandados para os países vizinhos”, atesta a oftalmologista Tara Rashid, de 45 anos, do Hospital Kindi, o segundo maior do país. “Nos anos 80, tínhamos os melhores equipamentos do Oriente Médio. Eram os vizinhos que vinham se tratar aqui.”
A deterioração das condições de vida no Iraque é uma longa história, que não começou com a invasão americana de 2003, mas com a repressão aos curdos nos anos 70, que canalizou os recursos para a área da defesa, seguida pela guerra Irã-Iraque (1980-88), pelo confronto com a coalizão internacional liderada pelos Estados Unidos depois da invasão do Kuwait em 1990, e pelas sanções internacionais impostas em 1991.
“Foi uma deterioração gradual”, diz Tara. Mas ela atingiu o auge com a violência sectária entre xiitas e sunitas, ou seja, com os iraquianos matando-se entre si. Boa parte dos sequestros, no entanto, é crime comum, para arrecadar dinheiro, mesmo que se dê a eles uma conotação política, dizem os iraquianos.
O dono de uma confecção de roupas masculinas conta que foi sequestrado três vezes. Na terceira, os bandidos lhe perguntaram se não queria trabalhar para eles: pagavam US$ 10 mil por cada indicação de endinheirado sequestrável. “Na época de Saddam, havia sequestros, mas eram punidos com pena de morte”, recorda Tara. “Nenhum seqüestro foi punido depois de 2003.”
Terrorismo, crime comum e violência política se mesclam no Iraque, agudizando a sensação de insegurança. Nos últimos meses, na corrida para as eleições parlamentares do próximo domingo, intensificaram-se atentados a bomba que aparentemente não são obra nem da Al-Qaeda nem de insurgentes sunitas nem de grupos radicais xiitas, mas de adversários do primeiro-ministro Nouri al-Maliki, tentando roubar dele o seu grande trunfo eleitoral: a relativa diminuição da violência, de 2008 para cá.
A onda de atentados tem cumprido seu propósito, de instilar descrença em muitos iraquianos. “Não acho que as coisas estejam melhorando”, diz Tara. “Depois das eleições, os perdedores não vão aceitar a derrota. Estamos nos preparando para mais violência.”
Mas nem todos estão pessimistas. “Não há comparação, a vida está muito melhor”, garante o funcionário público Abu Mohammed, de 50 anos. “Nossa democracia ainda é incipiente, mas agora temos liberdade.” Para Mohammed, que não quis dar seu nome completo, a retirada do Exército americano, prevista para começar em agosto, é um sinal de melhora: “Se Deus quiser, os americanos poderão sair, porque nosso Exército e polícia estão mais fortes.” Cumprindo uma promessa de campanha do presidente Barack Obama, o contingente americano deverá ser reduzido de 100 mil para 50 mil em agosto, restringindo-se a atividades de treinamento, até a retirada total, prevista para o fim do ano que vem.
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