Exército de Israel impede que habitantes, apavorados com avanço de radicais ou feridos, deixem o território
GAZA – Uma cancela amarela no fim de uma rua esburacada marca o começo do “Hamastão”. “Salam-aleikun” (paz a todos), cumprimenta o repórter do Estado, apertando a mão de um dos milicianos do Hamas que guardam a entrada, com o boné verde do movimento, camiseta e calça pretas e um fuzil AK-47 pendurado no ombro. “Ana sahafi Bresil” (sou um jornalista do Brasil). O miliciano abre um sorriso ao ouvir o nome do país do futebol: “Ahlan wa sahlan” (seja bem-vindo).
A chegada à Faixa de Gaza dominada pelo Hamas – cuja entrada foi permitida ontem por Israel, pela primeira vez em oito dias, apenas para jornalistas estrangeiros – é o ingresso em uma realidade nova, mas é também o fim de uma viagem estranha. Sair de Ramallah para Jerusalém nunca foi tão fácil, com os soldados israelenses batendo papo nos postos de controle, enquanto as forças de segurança da Autoridade Palestina, controladas pelo Fatah, perseguem, dentro da Cisjordânia, as milícias do Hamas, declaradas ilegais.
Os 86 quilômetros que separam Jerusalém do posto de Erez (fronteira entre Israel e Faixa de Gaza) também transcorrem sem problemas. A aproximação da Faixa de Gaza é assinalada pelo grande dirigível branco no céu, com o qual Israel toma imagens do território inimigo 24 horas por dia. No início da tarde de ontem, havia mais jornalistas de plantão do lado israelense do que aqueles dispostos a entrar na primeira leva para ver os vestígios do conflito que deixou mais de cem mortos em cinco dias, e como é um território controlado pelo Hamas.
Depois da fila para verificação de documentos, os jornalistas aguardam num ônibus velho, até que todos tenham sido identificados e recebido as instruções de ligar para um contato do Exército israelense quando quiser passar de volta: a fronteira continua selada dos dois lados. A espera dentro do ônibus é muito mais longa que o seu percurso: ele atravessa cem metros de barreiras de concreto e arame farpado e despeja os jornalistas ao lado de uma pequena abertura no vasto túnel que dá acesso ao lado palestino.
Da pequena entrada exala um cheiro perturbador de excrementos. Ali estão sentados ou deitados no chão centenas de palestinos que vieram tentar convencer os israelenses de que tinham uma razão muito forte para deixar Gaza, não foram sequer ouvidos e ficaram presos nesse limbo que não é nem Israel nem Palestina. Chegaram depois que os guardas do Fatah fugiram, em meados da semana passada, e antes de os milicianos do Hamas assumirem o lugar, no fim de semana. Agora, não podem ir para a frente nem para trás.
No fim do túnel de concreto, táxis autorizados pelos milicianos aguardam avidamente os jornalistas cheios de dólares. Os produtores locais dos jornalistas, contatados por celulares, não podem passar da cancela, a 1 quilômetro da saída do túnel. Os taxistas abusam: 30 shekels (US$ 7) pela ridícula distância.
Depois da matança e onda de saques da semana passada, o clima é tranqüilo na Faixa de Gaza. A polícia palestina deu lugar aos homens da Força Executiva do Hamas, com fardas de camuflagem azul, fuzis e coturnos. Até os guardas de trânsito são do Hamas: bonés verdes, jalecos fosforescentes novos em folha e – um jornalista palestino chama a atenção – sandálias. Todos, obviamente, de barba. Por via das dúvidas, boa parte dos homens comuns também deixa crescer os pelos do rosto. Não há mais mulheres sem o véu islâmico. Novidades para os palestinos, um dos povos mais seculares do mundo árabe-muçulmano.
“Pior do que isso, não pode ficar”, diz Heba, uma contadora de 27 anos, que trabalha numa organização não-governamental. “Perdi toda a esperança”, conta Ashraf Azzam, 22 anos, vendedor numa loja de roupas femininas. “A situação só piora. Deixei de lado meus planos.” A loja de blusas, saias e calças ocidentais está às moscas. As garotas poderiam sair com essas roupas? “Podem usar em casa”, argumenta Azzam.
Ao contrário do que acontece na Cisjordânia, onde tanto o Hamas quanto o Fatah são abertamente criticados pelo confronto violento, o Estado não encontrou ninguém nas ruas de Gaza que falasse mal do grupo islâmico no poder. No máximo, demonstram descontentamento e desilusão com a situação em geral. A maioria não quer nem dar entrevista – coisa incomum entre os palestinos.
Tudo parece sob controle, quando a Avenida Omar al-Mukhtar, uma das principais de Gaza, vive uma cena inesperada: mais de 20 garotos e jovens passam na carroceria de um pequeno caminhão, rindo e gritando: “O que aconteceu? Quem você ama? Fatah!”. Os homens de fardas azuis apenas observam. “Só não dispararam porque são crianças”, acredita um palestino.
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