Ataque a tenda onde estava Abbas mostra que região tem grupos armados demais disputando poder
GAZA – O panfleto das Tropas dos Mártires de Al-Aqsa, distribuído ontem no cemitério Sheikh Radwan, durante o enterro de um dos dois agentes de segurança palestinos mortos na noite de domingo em Gaza, não poderia ser mais claro – nem mais contraditório: “Nós nos vingaremos de quem fez isso. Depois, buscaremos a unidade nacional.”
Poucas horas depois de o presidente interino da Autoridade Palestina (AP), Rawhi Fattuh, anunciar o calendário da eleição do sucessor de Yasser Arafat, no dia 9 de janeiro, um tiroteio em Gaza reacendeu os temores de uma violenta luta intestina pelo poder, que poderia resultar numa guerra civil.
O presidente da Organização de Libertação da Palestina (OLP) e provável candidato a presidente da AP, Mahmud Abbas, chegou a uma enorme tenda montada ao lado da sede do governo palestino em Gaza no início da noite de domingo acompanhado do ex-ministro da Segurança Mohammed Dahlan, para receber as condolências pela morte de Arafat. Seus carros foram recebidos com pedradas. Quando entraram na tenda, onde havia mais de mil pessoas, cerca de 30 homens armados começaram a gritar, chamando-os de “colaboradores” dos EUA e “traidores”.
Testemunhas que estavam na tenda e reconheceram esses manifestantes disseram ao Estado que eles são homens de Ahmed Khalis, o comandante em Gaza das forças de segurança da Fatah – facção hegemônica na OLP, criada por Arafat em 1958. Conhecido como Abu Maher, Khalis é rival de Dahlan, também proveniente de Gaza e muito próximo de Abbas. Segundo essas fontes, Khalis teme ser afastado do comando num eventual governo de Abbas.
Diante da enorme quantidade de gente na tenda, os seguranças começaram a afastar o público do local reservado às autoridades. Começou então uma briga verbal, contam as testemunhas, entre os guarda-costas de Abbas e os homens de Khalis, que começaram a atirar. Kamal Abu Kainas, membro da Força 17, que fazia a proteção de Arafat, e Raed Darwish, do Serviço de Segurança Preventiva – outra das muitas unidades de segurança da AP – caíram mortos.
“Foi bom isso ter acontecido na presença de Abu Mazen (nome de guerra de Abbas), para que ele sinta a realidade que temos vivido aqui na Faixa de Gaza”, diz o jornalista Osama Damo, da TV Palestina, que assistiu ao incidente. “Aqui existem grupos armados demais, e ninguém teve coragem até agora de desarmá-los.”
O cortejo de Abu Kainas foi um retrato disso. Além dos membros da Força 17, do Serviço de Segurança Preventiva, do Serviço Secreto e da Segurança Pública, havia homens à paisana armados de fuzis-metralhadoras pertencentes a grupos que os próprios moradores de Gaza mais bem informados não conseguem identificar. “A democracia de Abu Ammar (nome de guerra de Arafat) era grande demais”, diz Abdelghani Jaber, diretor da Palestine Media Production. “Todo mundo tinha sua arma.”
Nos quatro meses em que foi primeiro-ministro, em 2003, Abbas manteve um bom relacionamento com Israel e com o governo americano. Acabou deixando o cargo em meio a divergências com Arafat, que não lhe queria ceder autonomia nas negociações de paz com Israel e nem o controle das forças de segurança ao seu ministro da área, Mohammed Dahlan. Os críticos o comparam agora com o presidente do Afeganistão, Hamid Karzai, que consideram um “fantoche” dos EUA.
“As pessoas estão tristes com o martírio de Arafat”, explica Maher Nemri, de 38 anos, que tem uma banca de falafel no centro de Gaza. “Como podem aceitar que alguém assuma seu lugar? Quando Abu Mazen chegou ao funeral, as pessoas ficaram com raiva.” Nemri, no entanto, gosta de Abbas: “Quando ele era primeiro-ministro, o dinheiro começou a circular na economia.” Até as melhorias conseguidas por Abbas nos territórios palestinos, graças às boas relações com Israel, são consideradas por seus opositorprova de sua traição.
Apesar das divergências, Abbas, número 2 de Arafat na OLP, deve usufruir da posição de herdeiro do líder palestino. “Vou votar em Arafat”, diz a vendedora de morangos Sahdia Abu Khalibe. Em seguida, se corrige: “Quer dizer, nesse novo de que estão falando.” Abu Mazen? “Sim, esse mesmo. Que Deus nos dê a vitória.”
Até o momento o único que pode abalar a candidatura de Abbas é Marwan Barghuti, líder da intifada, ou levante palestino, condenado por Israel a cinco penas de 99 anos pelo assassinato de cinco pessoas. “Vimos que Barghuti é uma pessoa ativa, talvez seja o ideal para o cargo”, diz o desempregado Adel Zohod, de 37 anos. Um homem passa pela calçada e grita, sem se identificar: “Ele é o único limpo.”
Os principais problemas para Abbas são a imagem de corrupção e de falta de eficiência que envolve a velha liderança palestina. Já os críticos de Barghuti dizem que ele não tem estatura política. “Ele é um líder de campo”, diz o médico Mustapha Hamden, de 56 anos. “Precisamos de um político.” Numa coisa, no entanto, todos os palestinos concordam: o que eles precisam mesmo é de uma boa eleição livre e direta, para escolher o seu novo presidente.