Espécie de ‘oposição’ consentida pelo Hamas, novo grupo evoca Yasser Arafat e adota o verde, a cor do Islã
GAZA – Os moradores de Gaza ainda nem se acostumaram com as bandeiras do Hamas hasteadas nos escritórios do governo e nas bases militares onde antes tremulavam as bandeiras palestinas, e uma nova bandeira surgiu ontem para aturdi-los ainda mais. No meio da tarde, nas principais avenidas da cidade, homens vestidos de preto, alguns armados com fuzis, penduraram nos postes e no Centro Cultural de Gaza bandeiras até então desconhecidas.
Trata-se do novíssimo Fatah al-Yasser. Com a imagem do líder histórico dos palestinos, Yasser Arafat, totalmente verde, a bandeira é um híbrido de duas simbologias palestinas violentamente separadas na ofensiva militar do Hamas contra o Fatah, que deixou mais de cem mortos na semana passada. Arafat, fundador do Fatah no fim dos anos 50, é o ícone do nacionalismo secular palestino; o verde, a cor do profeta Maomé, colore a bandeira do movimento fundamentalismo islâmico.
“Estamos criando um novo movimento, que terá um programa político próximo ao do Fatah, mas adepto às tradições islâmicas, sem ser tão radical quanto o Hamas”, explicou ao Estado o porta-voz do grupo, Nael al-Sharif. Segundo ele, a nova facção, que já nasce com 5 mil homens armados, não reconhece o governo de emergência formado há uma semana pelo presidente da Autoridade Palestina, Mahmud Abbas, nem a destituição do primeiro-ministro Ismail Haniyeh, líder do Hamas. “Só existe um governo, aprovado pelo Parlamento palestino, e que inclui todas as facções”, disse o porta-voz, repetindo as visões do Hamas.
A situação foi clareando quando o líder do novo movimento estacionou em frente ao Centro Cultural: Khaled Abu Hilal, um dissidente do Fatah, inimigo de morte do líder máximo da facção na Faixa de Gaza, Mohammed Dahlan. Hilal chegou no vistoso Ssangyong Chairman preto que pertencia ao ex-ministro Nabil Shaath, um dos líderes do Fatah na Faixa de Gaza. O carro, assim como muitos outros, foi confiscado pelo Hamas durante a tomada do território. Às vezes um carro diz mais que uma bandeira. Segundo analistas, o Hamas quer provar, com o Fatah al-Yasser, sua tese de que só livrou Gaza da “banda podre” do Fatah, e não está impondo um regime de partido único.
Outra garantia do Hamas que os moradores de Gaza parecem olhar com desconfiança é a de que o movimento não pretende impor o código de comportamento estrito do Islã. O repórter do Estado estarreceu um funcionário do hotel ao pedir uma cerveja – bebida comum nos hotéis da Cisjordânia. “Cerveja? Você está em Gaza, sob o Hamas”, situou o funcionário. Mulheres sem véus na cabeça ou com roupas ocidentais praticamente desapareceram das ruas e muitos homens pararam de se barbear. Na praia de Gaza ontem, numa tarde de verão particularmente tórrida, o Estado só encontrou mulheres com o corpo inteiramente coberto. A maioria trajava chador, a vestimenta preta, em um contraste desconcertante com a areia e o azul do Mar Mediterrâneo.
Não há sinais muito visíveis de desabastecimento na Faixa de Gaza, apesar de a Passagem de Karni, por onde entram e saem os produtos, estar fechada há dez dias. O Programa Mundial de Alimentação da ONU estima, no entanto, que o preço da farinha de trigo tenha subido 40%, e a escassez comece dentro de duas a quatro semanas.
A situação esteve relativamente tranqüila ontem – com exceção de um choque no sul do território entre o Exército israelense e milicianos palestinos, que deixou seis palestinos mortos e um israelense ferido. E do lançamento de cinco foguetes Qassam pelo Hamas no Deserto do Neguev, que deixou três israelenses feridos.
Mas as marcas do maior confronto armado entre os palestinos estão por toda parte na cidade, demonstrando que a relativa rapidez com que o Hamas capturou o território – uma semana – não significa que tenha sido sem resistência. As grandes vidraças da fachada do hotel em que o repórter do Estado está hospedado converteram-se em pequenos cacos de vidro azuis amontoados num canto do meio-fio. O carro em que trafega também não tem os vidros de trás, e as rachaduras no seu pára-brisa formam uma teia. Há muitos edifícios parcialmente incendiados ou atingidos por balas de fuzis e metralhadoras.
O balneário Shalihad (chalés), o mais badalado da Praia de Gaza, construído em 1996 por ninguém menos que Suha Arafat, mulher do líder palestino, foi incendiado pelos partidários do Hamas. O pretexto: inimigos do Fatah tinham se abrigado ali. O lugar precisava ser “purificado”. A mensagem, para muitos moradores de Gaza: a “corrupção moral” do nacionalismo secular é passado.
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