Hana, que faz vestidos para Rania, tenta entender como o berço da civilização pode ser tão castigado
AMÃ – Na sala de sua casa, em Amã, Hana Sadiq olha para o telefone com um misto de ansiedade e medo. Faz um dia que ela busca notícias sobre seu irmão, telefonando incessantemente para seus parentes em Bagdá. Ora é a ligação que não se completa, ora ninguém atende. Mas Hana não sabe se quer mesmo saber o que aconteceu.
Seu irmão Jafar, de 50 anos, teve um derrame cerebral na véspera – o terceiro em dois anos. Foi levado para o Hospital Al-Kendi, um dos maiores de Bagdá. Depois de passar algumas horas na Unidade de Terapia Intensiva, foi removido de lá, assim como os outros pacientes: a direção do hospital recebeu ordens de esvaziá-lo e de admitir apenas militares feridos na guerra.
Jafar foi levado de volta para sua casa, onde agoniza, se já não tiver morrido. Seria um duro golpe para Hana, que perdeu a mãe há duas semanas. Diabética, com 70 anos, a mãe de Hana veio para a casa da filha em Amã há três semanas, por recomendação médica. Ela estava perdendo a visão e necessitava de uma cirurgia que não se faz no Iraque. Com freqüentes blecautes elétricos em Bagdá – antes de começar a guerra -, ela estava preocupada também com o estado de conservação da insulina que tomava lá.
“Os médicos daqui disseram que os remédios que minha mãe estava tomando lá não eram bons”, lembra Hana. Não houve muito o que fazer. Angustiada com a situação do filho, a mãe sofreu um forte aumento da taxa de açúcar no sangue. E morreu. Hana levou o corpo da mãe para ser enterrado no Iraque. Quando chegou a Bagdá, seu irmão tinha acabado de sofrer o segundo derrame.
“Uma coisa chamou a atenção no funeral da minha mãe: só havia mulheres”, lembra Hana. “Todos os homens da minha família, meus primos e tios, emigraram para o Canadá e a Alemanha.” Menos Jafar. Engenheiro conhecido no país, ele teve suspensos todos os contratos em 1991, com o embargo imposto pela ONU depois da invasão do Kuwait pelo Iraque. Sua mulher morreu de câncer há cinco anos e ele foi com os quatro filhos morar com a mãe. Há dois anos, teve o corpo semiparalisado por seu primeiro derrame cerebral.
O pai de Hana também foi uma vítima indireta do conflito. Com a dificuldade de comprar peças de reposição por causa do embargo, ele dirigia um carro com os quatro pneus carecas, em 1993. Um veículo do Exército atravessou na sua frente, e ele não conseguiu frear. Foi levado vivo para o hospital, com uma hemorragia interna. Durante quatro horas, procuraram anestésicos para operá-lo, mas não encontraram. Ele acabou morrendo na mesa de operação.
“Minha família está tão cansada de guerras que não fez nada para se preparar para essa, não fez reservas de suprimentos”, observou Hana. “Eles estavam como ratos, zanzando de um lado para outro, procurando um lugar para ficarem juntos, porque sabiam que os ataques destruiriam pontes, separando suas casas, e cortariam as linhas telefônicas.” Quatro dias depois dos funerais de sua mãe, Hana decidiu voltar para Amã: “Deixei minha filha Nura (27 anos) aqui sozinha, e ela estava assustada.” Hana fechou a casa de sua mãe. Doou suas roupas e outros objetos. Sua tia colocou em sua mala apenas um bracelete de ouro, que sua mãe estava usando antes de ir para Amã.
No aeroporto de Bagdá, os policiais revistaram a mala de Hana e encontraram o bracelete. Hana foi detida: é proibido sair com ouro e outros objetos de valor do Iraque. “Eu estava tonta e confusa, sob o efeito de remédios”, lembra Hana, de 54 anos. “Pedi para me sentar e tomar um pouco de água, mas o diretor da alfândega negou, dizendo que eu era uma criminosa.” Hana explicou o valor afetivo do bracelete, disse que não ia ao Iraque havia 15 anos e não conhecia suas leis. Não adiantou. “Se quiser sair do Iraque, terá de deixar a jóia”, explicaram-lhe.
Hana só não ficou presa porque tem passaporte jordaniano, que o rei Abdullah II lhe deu, em retribuição por seu trabalho como estilista. Hana desenha os vestidos da rainha Rania e de outras mulheres da alta sociedade jordaniana, e tem sido sucessivamente premiada em festivais de roupas tradicionais na Europa.
Rodeada de antigüidades e objetos de arte em sua casa em Amã, vestida de luto, Hana tenta entender como seu país, berço da civilização (ler abaixo), dotado de uma elite intelectual admirada no Oriente Médio, com seus monumentos e paisagens extraordinárias, com seu perfume, suas palmeiras, suas noites estreladas impregnadas de poesia, pôde chegar aonde chegou.
Parte dessa beleza foi destruída por Saddam. Como as ruínas do balneário de Haman, em Kadhmiah, perto de Bagdá, onde o ditador mandou construir um estacionamento. Hana aponta para um quadro a óleo que ela mesma pintou, mostrando casas antigas com fachadas coloridas e grandes janelas que avançam para o Rio Tigre. “Ele mandou demolir essas casas, para construir prédios feios e rodovias.” Claro que as atrocidades de Saddam vão muito além da arquitetura.
Na casa de Hana trabalham iraquianos cristãos, cuja família foi marcada a ferro pelo regime. Sua irmã foi raptada pelos capangas de Uday, filho de Saddam, notório assassino e estuprador. Depois de seviciada, voltou para casa, mas foi rejeitada pela família. Num lance desesperado, a moça procurou Uday. Que a matou.
“Todo mundo conhecia essas histórias de Saddam e do regime”, exaspera-se Hana. “Por que só agora estão falando disso?”, pergunta, mostrando o livro que está lendo: Saddam Hussein, Portrait Total, biografia recém-lançada na França. Por mais odioso que considere Saddam, Hana se aterroriza com uma guerra que destrói o que restou de seu país.
“Lembro Bagdá como uma noiva, cheia de palmeiras, com um rio que serpenteia, com tantas flores e frutas que cheiram tão bem”, diz Hana, com um olhar nostálgico. “Como fazia calor, nos deitávamos no teto das casas à noite e dormíamos olhando as estrelas. Lá, você usa todos os sentidos. É por isso que há tantos poetas.” Recordando que ali foram inventadas a roda e a escrita e há 7 mil anos nasceu Ashtar, a primeira deusa da fertilidade, do amor e da beleza, Hana constata: “Eles deram ao mundo as coisas mais básicas. É a civilização da generosidade. Por que querem castigá-los?”
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