A semana que passou foi particularmente movimentada, com a reeleição fraudulenta de Evo Morales na Bolívia, a perspectiva da volta da esquerda ao poder na Argentina, as manifestações no Chile e a importante visita do presidente Jair Bolsonaro à China.
Mas talvez nossa audiência não tenha tido a oportunidade de perceber o significado do que aconteceu no Líbano, um país distante geograficamente, porém muito próximo, pela existência de 8 milhões de brasileiros de origem libanesa (o dobro da população do país).
A chamada “Revolução do WhatsApp” tem uma série de implicações e lições, para o Líbano, para o Oriente Médio, e para culturas em que o compadrio fala mais alto do que a meritocracia, e o Estado é capturado por grupos com capacidade de pressão, como é o caso também do Brasil.
As manifestações do Líbano são extraordinárias já pelo tamanho: calcula-se que um quarto da população de 4 milhões de habitantes saiu às ruas. Isso torna o movimento maior do que a Revolução do Cedro, que em 2005 obrigou a Síria a se retirar do país, que ocupava desde o fim da guerra civil, em 1990, e que está acostumada a influenciar desde sempre.
Mas o significado vai muito além do tamanho. O próprio motivo que desencadeou os protestos já é, para mim, extremamente revelador: a imposição de novos impostos sobre o uso do WhatsApp.
Essa plataforma é vista pelos libaneses — e por todos que a usam no mundo — como uma inovação tecnológica e de modelo de negócios, que nos libertou das pesadas tarifas impostas pelas operadoras de telefonia, para chamadas internacionais e mesmo locais.
Num certo sentido, o Estado libanês representa o oposto disso. É uma máquina de transferência de riquezas do setor produtivo para membros de famílias influentes, que o loteiam e extorquem proporcionalmente ao poder de cada grupo sectário: cristãos de diversas seitas, muçulmanos sunitas e xiitas e drusos.
Que uma estrutura arcaica e parasitária como essa quisesse sobretaxar o uso do WhatsApp, um benefício associado à inovação e ao mérito de quem o criou, representou para os libaneses a gota d’água. É claro que a taxa do WhatsApp apenas fez derramar um copo cheio de indignação. Mas é muito significativo que tenha sido esse o gatilho.
Essas manifestações fizeram eclodir também o descontentamento da população xiita com o Hezbollah e a Amal, os dois grupos políticos e, no caso do Hezbollah, armado, que supostamente a representariam. E isso foi algo realmente novo.
Até recentemente, os xiitas não ousavam enfrentar publicamente esses dois partidos. Havia uma crença segundo a qual criticar suas lideranças seria criar divisões entre os xiitas, e com isso abrir o flanco para os outros grupos sectários, na disputa pelo poder político e econômico no Líbano.
Os manifestantes rasgaram cartazes de Nabih Berri, líder da Amal e presidente do Parlamento desde 1992, e gritaram palavras de ordem contra Hassan Nasrallah, o todo-poderoso dirigente do Hezbollah. O “Partido de Deus” enviou para as ruas os seus violentos milicianos, para reprimir os manifestantes, que dessa vez no entanto os enfrentaram corajosamente. E foram protegidos por soldados do Exército, que no passado se desfazia na prática sempre que havia uma crise, porque seus integrantes deviam mais lealdade a seus líderes tribais do que ao país.
Na Revolução do Cedro, emergiu um sentimento nacional entre os libaneses, algo que tanto falta a esse país tão fragmentado. Mas faltava a presença dos xiitas, naquele momento ainda muito apegados a um instinto de preservação perante sunitas e cristãos. A participação dos xiitas nas atuais manifestações são um marco no surgimento de uma nova geração que se sente libanesa antes de tudo. Esse é um primeiro passo para a reforma radical de que o Estado libanês tanto precisa.
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