Brasileiros enfrentam o dilema de ficar ou partir

Muitos temem riscos do deslocamento ou de não ter como se sustentar no Brasil

SULTAN YAQOUB, Vale do Bekaa – A saída do comboio brasileiro do Vale do Bekaa estava marcada para as 7h de ontem. Pontualmente, os 99 passageiros – entre brasileiros, parentes libaneses e sete canadenses, de carona – estavam prontos para embarcar nos três ônibus. No meio da noite, no entanto, a embaixada do Brasil em Washington havia ligado avisando que as autoridades israelenses pediram para segurar até as 8h30.

Enquanto isso, os pais que ficavam – para trabalhar e cuidar do patrimônio da família – prolongavam, com os olhos marejados, as despedidas das esposas e dos filhos. Entre eles, estava Mostafa el-Orha, tesoureiro da prefeitura de Sultan Yaqoub, cidade de 12 mil habitantes, dos quais dois terços são brasileiros. “Nunca fui ao Brasil”, contou Mostafa, em português ensinado por sua mulher paulistana de origem libanesa. “Tirei visto para o Brasil, mas vou pensar muito antes de ir. Não posso deixar meu trabalho, minha casa.”

O desespero de muitas famílias para serem retiradas do Líbano ofusca outra realidade: os dilemas de muitas outras entre ficar e partir. Dos 10 mil a 20 mil cidadãos brasileiros que moram no Bekaa, apenas cerca de 2 mil foram embora (metade nos comboios). A resistência tem vários motivos: não ter como se sustentar no Brasil; os riscos de deslocamentos (qualquer veículo em movimento é um “alvo legítimo”, segundo Israel); e até o medo de voltar e encontrar suas propriedades ocupadas pelo milhão de libaneses que deixaram suas casas por causa da guerra.

Na terça-feira, o Estado testemunhou a aguda indecisão de uma biomédica de pais libaneses nascida em São Paulo. Ex-funcionária do Hospital das Clínicas, ela se casou com um libanês, tiveram cinco filhos e se mudaram para Ghazze, também no Bekaa. “Aqui, não conseguimos dormir a noite inteira, por causa dos bombardeios”, disse ela. “Mas o que vou fazer no Brasil? Vou viver lá de quê?” Depois de se casar, há 18 anos, ela abandonou a profissão, e não se sente capaz de voltar a trabalhar.

“Aqui, vivemos bem”, disse ela, referindo-se aos tempos de paz. “Minhas filhas podem andar livremente. Vejo nas TVs brasileiras os assaltos e seqüestros relâmpagos. Tenho medo de viver em São Paulo.” Seu marido, também funcionário público, encoraja-a a ir. “Mas a responsabilidade é minha. Não sei o que fazer. Meu coração parece que vai estourar. Vou decidir só na última hora.” Na manhã de ontem, ela não apareceu no que pode ter sido o último comboio brasileiro do Bekaa, pelo menos com avião do governo aguardando na Turquia.

Às 8h30, seguindo o procedimento, o diplomata Ruy Amaral, que organiza os comboios no Bekaa, liga para a embaixada em Beirute, em busca da confirmação israelense. Que só vem às 9h10. Um minuto depois, o motorista Khaled, cuja mãe é brasileira, sai liderando o comboio. Numa partida triunfal, ele vai buzinando para os moradores da cidade, sorrindo e acenando.

Quando passamos pela vizinha Ashtura, Abdalla Fares, um ex-policial libanês de 61 anos, mostra a avenida onde um míssil israelense destruiu completamente um táxi sírio que trafegava ao seu lado, matando os cinco passageiros, há duas semanas. Abdalla e sua mulher Hamdi, de 62, que moram há 35 anos em São Paulo, não vêem a hora de voltar. “Vamos para nossa terra”, diz Abdalla. “Nunca vi igual o povo brasileiro. Eles têm um coração diferente.”

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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