Em Kabrikha, toda casa já foi destruída uma vez

Moradores voltam e encontram vilarejo no Sul do Líbano em ruínas

KABRIKHA, Sul do Líbano – Ali Hijazi lamenta, mas não pode atender ao desejo de sua avó. Zakie gostaria de ir ver sua casa destruída. Mas os escombros de outras casas se espalharam pela ruazinha de terra que dá acesso à sua. Não se pode passar de carro e Zakie, com uma idade estimada em 105 anos, não pode caminhar sobre os destroços.

Sentada na varanda da casa de Ali, sobre a qual tremula uma grande bandeira do Brasil, Zakie vai desfiando o longo novelo de conflitos que presenciou em Kabrikha, o vilarejo onde nasceu, assim como seu pai, e para onde seu avô se mudou no século 19, vindo de Aitit, outra localidade do Sul do Líbano. Uma das recordações mais vivas de Zakie é a de seu pai sendo levado à força pelos turcos para lutar na Primeira Guerra Mundial.

Finda a guerra, vieram os franceses, e ela se lembra dos novos colonizadores invadindo sua casa e quebrando um espelho grande, em castigo pelo fato de os moradores não darem informações sobre esconderijos de combatentes da resistência. Finalmente vieram os israelenses, cuja fronteira hoje se encontra a 10 quilômetros de Kabrikha, em linha reta. Dali se vêem torres de televisão israelenses.

O repórter quer saber quem foram, do ponto de vista de Zakie, os piores: os turcos, os franceses ou os israelenses. “Bem, antigamente pelo menos não havia bombardeios aéreos”, responde. Com audição reduzida, ela diz que os bombardeios a atordoam, porque sente a terra tremer mas não sabe exatamente de onde eles vêm. “Fico num cantinho.” Israel bombardeou e invadiu a área em 1948, 1972, 1978, 1982, 1993, 1995 e neste ano, contabilizam os moradores.

“Aqui, não há nenhuma casa que não tenha sido destruída no mínimo uma vez por Israel”, afirma Ali, 42 anos, que em 1985 se mudou para Foz do Iguaçu, hoje tem loja de eletrônicos em Ciudad del Este, mas mora do lado brasileiro, onde seus filhos nasceram. Também não há nenhuma casa que não seja de pessoas que moram no Brasil ou que tenham parentes no Brasil. Kabrikha é, num certo sentido, um reduto brasileiro do Hezbollah, onde o verde e amarelo das duas bandeiras competem e se mesclam, a do Brasil nos telhados das casas, a do Partido de Deus nos postes das ruas.

A cidade tem cerca de 5 mil habitantes, dos quais apenas 1.500 passam todo o tempo aqui. O resto costuma vir nas férias de verão, precisamente esta época do ano. “Quem é daqui gasta seu dinheiro para construir casas boas aqui”, explica Mohamad Hijazi, casado com uma brasileira de Foz do Iguaçu, com quem mora, com quatro filhos, num apartamento no sul de Beirute.

Com as estradas congestionadas pelos milhares de pessoas retornando para o Sul, aproveitando a trégua iniciada na segunda-feira, ontem foi dia de reencontro em Kabrikha, 120 quilômetros ao sul de Beirute. Os que voltaram para ver o que se passara com suas casas abraçavam e beijavam nas ruas aqueles que ficaram e enfrentaram os bombardeios durante 33 dias. Ahmad Hijazi, de 84 anos, tio de Ali, vasculhava o armário da cozinha – provavelmente o único móvel intacto em sua casa.

Aparentando mais exaustão do que altivez, Abed Atwi, de 60 anos, contava como aturou o bombardeio todo esse tempo, com sua mulher. “Melhor morrer em casa do que na rua”, disse ele, na frente do sobrado semidestruído – mas cuja estrutura, como a maioria das casas parcialmente atingidas, parece comprometida. “E evitar que Israel tome nossa terra.”

De frente, há uma casa bombardeada em 1972, reconstruída, bombardeada em 1978, reconstruída, e bombardeada agora de novo. Da original, contam os vizinhos, só resta um pé de amora. “Volte daqui a seis meses, para ver como esse povo se levanta e reconstrói”, diz Ali.

Mais adiante, está a casa e ateliê do artista Mortada Hijazi, de 70 anos, que talha figuras de cimento nas paredes, inspirado nas colunas romanas encontradas em grande quantidade em Kabrikha. “Aqui é minha casa, minha cidade”, orgulha-se Mortada, ao responder por que não foi embora durante o bombardeio. Seu filho, sua nora brasileira e seus dois netos moram no sul de Beirute e estavam de férias em Kabrikha quando começou o bombardeio. Mas conseguiram chegar a salvo à capital. “Adoro minha nora”, diz Mortada. “Eu torço pelo Brasil.”

“Ninguém deseja voltar para casa e encontrá-la destruída”, diz Ali. “Ninguém quer ter que matar para sobreviver. Queremos viver em paz. Mas não esqueça que foi Israel que invadiu o Líbano.”

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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