Pólos da política dos EUA – democracia e guerra ao terror – entram em curto-circuito
DAMASCO – Muitos vidros de táxis, de ônibus e vitrines de lojas na Síria exibem cartazes com fotos do líder do Hezbollah, Hassan Nasrallah, ao lado das do presidente sírio, Bashar Assad, e de seu pai, Hafez, morto há seis anos. São muito parecidos aos espalhados pelo Irã, com duas diferenças: os slogans do tipo “Liberem a Palestina” (e, agora, o Líbano) estão em árabe, em vez de farsi, e lá, ao lado de Nasrallah, figuram o presidente do Irã, Mahmud Ahmadinejad, e o seu líder espiritual, Ali Khamenei. Bandeiras do Hezbollah, muitas delas novas, enfeitam os tetos de muitas casas.
Essas imagens são a representação gráfica do intrincado xadrez que se desenrola no Oriente Médio. Ele vem de longe, mas se pode convencionar que teve início na invasão do Kuwait pelo Iraque, em 1990. Saddam Hussein anexou o que chamou de “a 19ª província iraquiana” depois de receber, por canais diplomáticos, o sinal de que o governo do então presidente George Bush, pai, não reagiria militarmente.
A invasão do Kuwait era uma oportunidade aguardada pelos Estados Unidos para estabelecer no Golfo Pérsico presença militar robusta. O único território disponível com dimensões compatíveis era o da Arábia Saudita, apesar das previsíveis reações à presença de forças estrangeiras na terra sagrada do Islã. Ela desencadeou a fúria do saudita Osama bin Laden contra os Estados Unidos, ao lado de uma onda de atentados dentro do reino que sacudiu a monarquia.
As Forças Armadas americanas precisavam de um novo santuário na região. Em 2003, George Bush, filho, movido, entre outros, por algum ímpeto edipiano, decidiu que o Iraque estava maduro para o papel, depois de desidratado por uma década de sanções econômicas.
Saddam Hussein, causador de uma guerra com o Irã que deixou 1 milhão de mortos (1980-88), era arquiinimigo do regime iraniano, mas os aiatolás denunciaram a intervenção americana com a máxima veemência. O Iraque, com sua vasta maioria xiita (60%), funcionava como anteparo entre os Estados Unidos e o Irã, e sua ocupação pelos americanos os colocaria frente a frente com o Irã.
O aniquilamento de Saddam e o redirecionamento das prioridades americanas para a “guerra ao terror” arruinaram até mesmo uma bem-sucedida política de boa vizinhança tácita entre o Irã e Israel, frente aos rivais árabes comuns. (O então líder palestino Yasser Arafat visitava em Bagdá na época da invasão do Kuwait.) A nova configuração elevou para um nível insuportável a crônica sensação de vulnerabilidade do Irã, rodeado de vizinhos hostis.
Os antigos planos nucleares, que vinham sendo conduzidos sem alarde, converteram-se, com a eleição do ultraconservador Mahmud Ahmadinejad, em 2005, em trunfo para negociação ou em elemento dissuasivo, conforme os humores internacionais.
Nas últimas semanas, o impasse acerca do programa nuclear iraniano aproximava-se do clímax, chegando ao fim o prazo que Teerã se deu (20 de agosto) para responder à proposta de incentivos dos cinco membros do Conselho de Segurança da ONU mais a Alemanha (Grupo dos Seis) para desistir dele ou agüentar as conseqüências.
O Irã percebeu que podia lutar com as armas dos Estados Unidos.
A estratégia de Bush para o Oriente Médio tem dois pólos. O pólo negativo é a guerra ao terror; o positivo, a promoção da democracia, o “legado” que o presidente americano fantasiava deixar, com o Líbano como principal laboratório. Depois da morte de Arafat, em 2004, e do assassinato do primeiro-ministro Rafic Hariri – do qual a Síria foi considerada suspeita -, em 2005, Bush pressionou pela realização de eleições “livres” na Autoridade Palestina e no Líbano, sem medir as simpatias pró-islâmicas.
Resultado: o Hezbollah e seus aliados obtiveram 27% das cadeiras do Parlamento libanês e um papel proeminente no novo gabinete, enquanto o Hamas arrebatou o governo da AP.
O Hezbollah foi criado pelo Irã, em 1982, com o propósito de resistir à ocupação de Israel, que invadiu o Líbano naquele ano para expulsar os guerrilheiros da Organização de Libertação da Palestina. Gozava do salvo-conduto da Síria, que ocupava parcialmente o Líbano até ser obrigada, depois da morte de Hariri, a sair. O Líbano sempre foi o anteparo da Síria frente a Israel.
Ultimamente, o Hezbollah vinha sendo pressionado a depor armas – a parte não cumprida da resolução 1559 do Conselho de Segurança que exigiu a saída da Síria.
Eleito o governo do Hamas, Israel passou a negar-lhe os repasses de impostos, enquanto EUA e União Européia suspenderam a ajuda financeira. O Irã veio a seu socorro, com US$ 50 milhões. Israel já havia flagrado, nos últimos anos, o Hamas trazendo armas do Irã. A amizade do Hamas (sunita) com o Hezbollah (xiita) data de 1992, quando foi acolhido por ele, depois que Israel o expulsou para uma “terra de ninguém” no sul do Líbano.
O jogo estava armado.
Ciente de que o novo governo do inexperiente Ehud Olmert, destituído de credenciais no tema da segurança, reagiria desmedidamente para se provar confiável, o Hamas atravessou a fronteira e capturou um cabo israelense, atraindo para a Faixa de Gaza a fúria israelense.
Era o primeiro sinal, antes de uma reunião crucial do secretário-geral do Conselho Supremo de Segurança do Irã, Ali Larijani, com representantes europeus, sobre o tema nuclear. Nesse encontro, as portas se fecharam de vez para as pretensões iranianas de levar adiante seu programa nuclear sem enfrentar sanções do Conselho de Segurança. De Bruxelas, a delegação iraniana voou diretamente para Damasco.
No dia seguinte, comandos do Hezbollah cruzaram a fronteira do Líbano, mataram oito soldados israelenses e capturaram dois. Israel seguiu o padrão, e tratou o Líbano como a Faixa de Gaza. O governo israelense sabe que o sinal verde dos EUA para a ação no Líbano muda para vermelho se ameaçar derrubar o primeiro-ministro anti-sírio Fuad Siniora – que quase certamente daria lugar a um governo mais pró-sírio, além de pró-Hezbollah.
Assim, no tabuleiro fraturado do Líbano, o Irã conseguiu expor a óbvia contradição entre democracia e guerra ao terror – os dois pólos da política de Bush.
A carnificina de Qana, há uma semana, foi a senha para Ahmadinejad anunciar que seu governo estava “reavaliando” sua resposta final à oferta de incentivos do Grupo dos Seis. É jogo jogado. O Irã parece ter saído com as brancas.
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