O inimigo que ninguém quer ter

Caminhões-bomba de 1983 do Hezbollah estão frescos nas memórias dos EUA e França

Uma força multinacional de paz no Líbano é uma dessas idéias que todos aprovam com entusiasmo – desde que seja o outro que a tenha de pôr em prática. Afinal, se Israel decidiu ignorar as lições da história – por falta de tino ou de escolha, uma tortuosa discussão -, elas estão muito frescas na memória dos candidatos naturais a protagonizar essa operação.

A invasão do Líbano de 1982 – também em um julho – foi desencadeada por um evento quase tão fortuito quanto a captura, no dia 12, dos dois soldados israelenses pelo Hezbollah, seguida de uma reação igualmente desproporcional, aos olhos do mundo. Depois de um atentado contra o seu embaixador em Londres, Israel invadiu o Líbano por terra, ar e mar, decidido a aniquilar as bases da Organização de Libertação da Palestina (OLP) no país vizinho.

“Agora, vamos destruir o que tem de ser destruído em Beirute Ocidental”, foi a frase lapidar do comandante do Estado-Maior israelense, Rafael Eitan, sem fazer idéia do quanto essa destruição se estenderia para muito além do setor muçulmano da capital, até o cerne da política e da segurança de Israel.

O noticiário da época quase poderia ser republicado hoje, substituindo “OLP” por “Hezbollah”. Até os foguetes disparados pelos guerrilheiros palestinos contra o norte de Israel eram os mesmos katiushas de hoje (ao lado de alguns mísseis). A diferença está em que as potências ocidentais ainda acreditavam que pudessem impor algo no Líbano. Em meio à retirada da OLP, as tropas de paz americanas, francesas e italianas desembarcaram em agosto de 1982 em clima de quase euforia.

Menos de um ano depois – antes mesmo de completada a retirada da OLP, com a dramática partida de Yasser Arafat e de seus 4 mil combatentes do porto setentrional de Trípoli em dezembro de 1983 -, as forças de paz se tinham convertido em alvos dos guerrilheiros e terroristas, tornando-se parte do conflito. Em setembro daquele ano, tanto os Estados Unidos quanto a França bombardeavam posições sírias e drusas no Líbano.

No mês seguinte, veio o troco. Pouco depois das 6 horas do dia 23 de outubro, dois caminhões-bomba se lançaram contra a base dos fuzileiros navais americanos no aeroporto de Beirute e contra o quartel-general dos pára-quedistas franceses em Ramelt-el-Beida, ao sul da capital. Os militares dormiam. O saldo: 241 americanos e 58 franceses mortos.

Era a estréia, em grande escala, do Hezbollah, embora suas células – que se divertiam inventando nomes bizarros, variações em torno das palavras “jihad” e “resistência” – já viessem cometendo atentados menores. O ataque coordenado foi de tal eloqüência para as opiniões públicas americana e francesa que motivou as visitas-surpresa, três dias depois, dos então vice-presidente George H. Bush e presidente François Mitterrand ao Líbano. Seguiram-se as retiradas de suas tropas do país.

Essas retiradas foram assimiladas, pelos xiitas libaneses em particular e pelo mundo muçulmano em geral, como o batismo vitorioso do Hezbollah, que desde então assumiu progressivamente a tarefa de combater Israel no sul do Líbano. Os israelenses, por sua vez, retiraram parcialmente suas tropas em 1985, mantendo uma zona-tampão de mil quilômetros quadrados (um décimo do diminuto território libanês) até 2000, quando finalmente abandonariam também essa faixa de terra. Cada uma dessas etapas da retirada israelense foi marcada por ações espetaculares do Hezbollah, e novamente assimiladas como vitórias do Partido de Deus, patrocinado pelo Irã e protegido pela Síria.

Nas duas últimas décadas, o Hezbollah tem representado, do ponto de vista militar, um dos exemplos mais consistentes de exploração das vantagens da chamada guerra assimétrica em favor do lado supostamente mais fraco.

Do ponto de vista ideológico, ele foi o responsável por colocar em prática a reinterpretação do Alcorão, promovida pelo establishment teológico do Irã, que legitimou o suicídio como martírio, abrindo caminho para o recrutamento de terroristas para a “guerra santa”, com a promessa do paraíso. Nesse sentido, é um dos fundadores do chamado terrorismo islâmico, ao lado da Irmandade Muçulmana, no Egito.

Esta é a diferença crucial entre a OLP e o Hezbollah, entre Arafat e o xeque Hassan Nasrallah: o primeiro queria seus combatentes vivos, e por isso se deixou expulsar do Líbano, onde, de resto, era um estrangeiro; o segundo está em busca da morte na terra natal. É o inimigo que ninguém deseja ter.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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