Farran,o único médico que restou em Tiro, continuou atendendo feridos depois que míssil destruiu seu prédio
TIRO, Sul so Líbano – O clínico geral Ghassan Farran estava atendendo feridos de guerra num ambulatório improvisado no prédio da prefeitura de Tiro, no dia 26, quando recebeu a notícia. O prédio onde ele vivia com a mulher e quatro filhos tinha sido completamente destruído por mísseis israelenses. Farran, o único médico que restara na cidade de 120 mil habitantes, dos quais 90 mil saíram fugindo da guerra, ainda ficou dois dias atendendo, antes de ir ao local, ao qual não pretende voltar jamais.
“Fiquei chocado”, conta Farran, que é vereador de Tiro e, como seus 20 colegas e o prefeito, não recebem salário. Em seguida, voltou para continuar atendendo os pacientes, que não paravam de chegar. No prédio, diz ele, funcionava um escritório de relações públicas do Hezbollah, sem função militar.
“Perdi tudo o que eu tinha”, resume o médico, que, com o cessar-fogo, pretende agora voltar para seu consultório particular, abandonado há mais de um mês. Ferran conta que estava feliz porque, uma semana antes do ataque, seu filho mais velho tinha passado no exame final do ensino médio. “Agora, não sei como vou fazer para bancar a universidade dele.”
“Israel rouba nossos sonhos”, declarou Farran. De religião xiita, ele conta que nunca teve grande apreço pelo Hezbollah. “Vejo a vida de uma forma muito diferente da deles”, explica o médico de 49 anos. “Não fui, não sou nem serei Hezbollah. Mas, quando Israel destruiu minha casa, empurrou-me para o Hezbollah.” Das cidades importantes do Líbano, Tiro, a maior do Sul, foi a mais castigada pela guerra.
O Hezbollah esconde em seus extensos bananais na costa do Mediterrâneo suas baterias de foguetes Katiucha, e os lança dali, atraindo os bombardeios israelenses. Tiro e arredores foram cenário de alguns dos mais encarniçados enfrentamentos entre os guerrilheiros xiitas e os soldados israelenses.
Com 60% de xiitas, 25% de cristãos e 15% de sunitas, e mais ainda uma população de 55 mil refugiados palestinos distribuídos por cinco campos, Tiro, 80 quilômetros ao sul de Beirute sempre foi vista por Israel como um reduto político e militar do inimigo. Depois da guerra, a hostilidade dos moradores dessa cidade histórica, fundada pelo fenícios há 7 mil anos e ocupada pelo império romano, parece muito maior – independentemente de seu grau de simpatia pelo Hezbollah.
“Muita gente que não apoiava o Hezbollah passou a apoiar, porque é a primeira vez que Israel perde uma guerra”, diz Tareq el-Ali, de 17 anos, da segunda geração de palestinos nascidos no campo de refugiados de El-Buss.
“Se tivermos de procurar culpados por essa guerra, teremos de começar pela criação do Estado de Israel, em 1948”, diz Raymond Salha, um cristão melequita (segue o papa e o rito grego ortodoxo) de 71 anos, dono do Hotel al-Fanar, na beira-mar, cujos dez quartos deveriam estar cheios, como em todos os verões, de turistas franceses, italianos, holandeses, japoneses e coreanos, em vez de correspondentes de guerra.
“Em seguida, os árabes, por não terem aceitado metade da Palestina (no Plano de Partilha da ONU, em 1947). Hoje, eles provavelmente não têm nem um Líbano.” Para Salha, “você pode considerar que o Hezbollah está errado, é tolo, fora da lei, o que você quiser, mas não era necessário Israel ter destruído o país por causa da captura de dois soldados”.
O enfermeiro Mohamad Rachid, de 45 anos, muçulmano sunita, voltou há cinco anos de Abu Dhabi, nos Emirados Árabes Unidos, onde recebia um salário de US$ 3 mil. Aqui, não conseguiu encontrar emprego em sua profissão, e vinha trabalhando num supermerdado, com um salário de US$ 300, que sua mulher, contratada como secretária, complementava com outros US$ 200. Com a guerra, ambos foram dispensados, e estão com dificuldade de sustentar os cinco filhos.
A oficina mecânica de frente para o apartamento onde moram (alugado por US$ 200) foi atingida por dois mísseis há duas semanas. Eram 17h30, e seu filho mais novo, Abbas, de um ano e meio, estava no pátio do apartamento térreo, que ficou coberto de pedras e pó. Mas o menino não se machucou. O dono da oficina, Ahmad Karaoum, morreu na hora. Sua mulher e dois filhos, que estavam em casa, nos fundos, ficaram feridos.
“Eu culpo Israel e a América”, diz Rachid. “A América é o grande demônio do mundo. Todos os problemas vêm dela.” Para ele, se Israel trocar prisioneiros com o Hezbollah e devolver ao Líbano as Fazendas de Shebaa, não terá mais problemas com o grupo guerrilheiro. “Todos aqui gostam do Hezbollah.”
Obviamente, o entusiasmo maior está na maioria xiita. O comerciante xiita Hassan Awali, de 43 anos, percorria ontem as ruas de Tiro com as filhas Sara, de 12, e Salia, de 11, no seu imponente Mercedez-Benz, com a bandeira do Hezbollah. “É algo que sobe à cabeça, é um motivo de orgulho”, disse Awali, que antes da guerra já apoiava o Partido de Deus.
Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.