‘Planos de reforma de Assad acabaram atropelados pela onda de protestos’

Em entrevista ao ‘Estado’, o general cristão libanês Michel Aoun, aliado do ditador sírio, relata sua última reunião com ele antes do início dos protestos

BEIRUTE – Quarenta dias antes do início dos protestos na Síria, o general Michel Aoun esteve com o presidente da Síria, Bashar Assad, seu aliado. No encontro, em Damasco, Assad disse a Aoun que iniciaria reformas, porque “a estrutura do Estado não pode responder às aspirações do povo sírio e à situação interna”, segundo o relato do general cristão maronita, ex-presidente e ex-primeiro-ministro do Líbano. Os supostos planos de Assad foram atropelados pelos protestos.

Em entrevista exclusiva ao Estado, Aoun, de 76 anos, acusa o Ocidente de atacar um país “moderno e laico”, a Síria, ao mesmo tempo em que apoia regimes “autoritários e teocráticos” no Golfo, citando como exemplo o Bahrein. Antigo inimigo da Síria, de cujas tropas escapou em um tanque para se refugiar na embaixada da França em Beirute, em 1990, o general explica que mudou de lado depois da retirada síria, em 2005, em nome das boas relações com o poderoso vizinho.

Líder do Movimento Patriótico Livre, aliado do grupo xiita Hezbollah, patrocinado pela Síria e pelo Irã, Aoun quer indicar o ministro do Interior do novo governo, encarregado da polícia e da organização das eleições. A resistência na coalizão a essa indicação paralisa desde janeiro a formação do gabinete.

O senhor se encontrou com o presidente Bashar Assad no início do ano. O que ele lhe disse?

Foi no dia 9 de fevereiro, na festa de São Marão (padroeiro dos católicos maronitas libaneses). Ele me convidou a jantar em Damasco. Ele me disse que faria reformas porque a estrutura do Estado não pode responder às aspirações do povo sírio e à situação interna.

O senhor falou com ele depois disso?

Certamente às vezes trocamos idéias. O fato de as reformas terem sido exigidas pelo povo sírio diminuiu o efeito da boa intenção do Sr. Assad. De qualquer maneira ele anunciou as reformas. Uma parte do povo sírio, aqueles querem realmente as reformas, acalmou-se e deixou de participar das manifestações. Certamente os radicais islâmicos vão continuar. À medida que a participação no movimento diminuiu, apareceram armas e muitos incidentes ocorreram. Não são mais reivindicações pacifistas e democráticas de reformas políticas. Tornou-se uma revolução armada para derrubar Bashar Assad e mudar o regime. Há um uso da força contra a força, não contra manifestantes. Quais são as verdadeiras intenções da Europa ou da América em relação a um país laico, como a Síria, que busca a modernidade e representa uma contenção do integrismo? Por que na França proíbem as mulheres de usar o véu e aqui o querem generalizar? É uma contradição. O regime sírio vai bem, conseguiu liberalizar seu sistema econômico. Por outro lado, o Ocidente apoia monarquias autoritárias e teocráticas do Golfo. É uma total contradição.

Mas o Ocidente acredita que esse é um movimento do povo sírio. O que ele poderia fazer?

Eles interferem e ameaçam todos os dias o regime sírio com sanções. O verdadeiro motivo é a recusa da Síria, do Líbano e do Iraque de aceitar um tratado de paz injusto com Israel, que quer a água e a implantação dos palestinos nos outros países.

O senhor era inimigo da Síria. O que o fez mudar de posição?

Havia um conflito, porque a Síria estava ocupando o Líbano. Eu estava lutando para recuperar a independência e soberania do Líbano. Depois que a Síria se retirou do Líbano (em 2005), é preciso ter boas relações com um país vizinho. Agora é uma situação de normalidade. Napoleão dizia que a política é a filha da história, e a história é a filha da geografia, que é uma constante que não muda. Mesmo durante o combate, eu dizia que depois que os sírios se retirassem teríamos boas relações.

O atual impasse na formação do gabinete libanês tem a ver com seu desejo de indicar o ministro do Interior?

É meu direito nomear o posto mais eminente nesse ministério. Sou o maior bloco no interior da nova maioria.

E como o senhor acha que se poderá sair desse impasse?

Não é um impasse. É responsabilidade do primeiro-ministro formar o governo. Não deveria demorar. Já se passaram quase quatro meses. Isso vai desencadear uma nova crise.

O senhor não acha que, pela estabilidade do Líbano, o Hezbollah deveria entregar suas armas, como fizeram os outros grupos?

Ainda não. A hora vai chegar. Isso não será para sempre.

Qual a utilidade dessas armas?

Defender nosso país contra as agressões israelenses. Todos os dias, temos sobrevôos israelenses. Temos 500 mil refugiados palestinos. Temos de encontrar uma solução aceitável para essa gente. Não podemos integrá-los. Eles estão esperando para voltar para o país deles.

Israel argumentaria que precisa sobrevoar o Líbano por causa das armas do Hezbollah.

O que podemos fazer se eles podem interferir em qualquer área do Oriente Médio, com as armas mais sofisticadas? Têm F-15, F-16, F-18, mísseis, bombas de fragmentação. É uma nação super-armada. O Hezbollah tem apenas foguetes. Não há equilíbrio entre o que o Hezbollah e Israel têm.

Por que o Exército nacional libanês não deveria desempenhar esse papel?

Porque não temos recursos suficientes. Israel é ajudado pelos Estados Unidos. Estamos endividados. Temos de defender nosso país, com a guerra do pobre contra o rico, que é a guerrilha, Funciona.

Ainda há lealdades sectárias no Exército libanês?

Certamente há divisões, mas são mais políticas. É um Exército nacional, que tem as mesmas sensibilidades que as pessoas. Mas enquanto cumpre missões sua lealdade é ao país.

As milícias da época da guerra civil ainda têm armas?

Sim.

De que tipo?

Metralhadoras, foguetes antitanque de uso manual, morteiros. Mas não há equilíbrio de forças. É por isso que há calma. Nunca teremos luta dentro do país.

Desequilíbrio em favor do Hezbollah?

Sim. Mas não para fazer guerra dentro do país. Essas armas são para defender o território libanês. Mas com certeza serão usadas se eles foram atacados por trás.

O senhor tem um grupo armado?

Não. Apoio o Exército.

O senhor não se preocupa com a influência do Irã sobre o Líbano por meio do Hezbollah? A Síria não ocupa mais o Líbano, mas tem o Hezbollah.

Não. Os iranianos falam persa, não árabe. Estão a 3 mil km daqui. Não é um país vizinho. Não têm influência. Mas sentimos que são um país amigo porque resiste à ocupação israelense. O que não é bom para Israel é bom para nós. A Síria também não interfere nos nossos assuntos atualmente. Eles têm os próprios problemas. E ambos queremos ver um ao outro estabilizado, porque há uma interdependência.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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