Reduto do Hezbollah é agora pó e entulho

Milícia guarda entrada de Haret Hreik, onde ficava o QG do grupo

BEIRUTE – Quem entra no bairro de Haret Hreik deve aguçar a audição e a visão. E ignorar o olfato. Os estrondos dos aviões israelenses são o aviso de que se está no lugar errado na hora errada. Os objetos no chão coberto de pó, dentro das casas, dos pátios, entre os destroços, são mais reveladores que a destruição em si – que com o tempo se banaliza. O cheiro de cadáveres que exala dos escombros produz primeiro náusea, depois dor de cabeça, até secar completamente a garganta.

Mesmo depois de destruído e evacuado, a entrada no bairro continua sendo controlada por milicianos do Hezbollah, que circulam em motocicletas. Jornalistas têm de credenciar-se perante eles. E esperar a ordem para entrar. Nem o Exército nem a polícia libanesa podiam entrar na área onde ficava o quartel-general do Hezbollah – chamada de Praça de Segurança. O prédio que abrigava a sede da organização e o escritório de seu líder, Hassan Nasrallah, foi reduzido a um monte de pedaços de concreto e pó.

Os bombardeios ao reduto do Hezbollah no sul de Beirute começaram no dia 12 de julho, poucas horas depois da captura de dois soldados israelenses e morte de outros oito. O último antes da visita do Estado ocorrera na noite de sábado. A visita foi entre as 11h e as 13h30 de ontem. Às 14h45, recomeçaram, com uma barragem de 20 mísseis. E seguiram tarde e noite adentro. Novos panfletos caíram sobre Beirute de noite, avisando para ficar longe de toda a área xiita do sul da cidade, chamada de Dahye.

Os mísseis e bombas soterram consigo uma parte dos objetos que estavam dentro dos prédios e casas; outra parte é lançada para fora. Dos escritórios do Hezbollah, voaram documentos cujos fragmentos ainda estão na rua. Um deles é o rodapé de algum memorando: “Em nome de Deus. O Hezbollah são os conquistadores. Resistência islâmica. 28 de fevereiro de 2005. Por favor, cumpra a ordem. Preparação da Unidade 600. Número de referência 127.5509. Com a bênção de Deus.”

A poucos metros dali, um velho livro da poetisa Daisy al-Amir está aberto na página 94, no poema Al-Waad, ou A Promessa – o mesmo nome que Nasrallah deu à operação do dia 12 de julho. Esquecido no meio da destruição, o poema parece dialogar com ela: “Fiz um seguro na minha vida contra a palavra promessa. Promessas se tornam tão perigosas que ameaçam a vida das mulheres, de todas as pessoas. É por isso que as pessoas se asseguram contra esse perigo, que engole os dias e os anos, porque promessas sempre ficam seladas com cera vermelha. E matam os sonhos e nunca realizam nada, porque o que fica é a decepção.”

A Praça da Segurança estava rodeada de prédios residenciais, cujos objetos domésticos – sapatos, brinquedos, roupas, cadernos, cadeiras – se misturam agora no chão com os objetos do Hezbollah, numa metáfora da proximidade física entre a população civil e a organização político-militar. Uma embalagem de brinquedos “seguros e duráveis” se espreme debaixo de um tonel de aço. Ao seu lado, um casaco e uma boina militar. Mais adiante, uma mala de viagem, inteiramente aberta e vazia. Tudo isso está espalhado no chão do que era o estacionamento do Hezbollah.

Bombardeios dispõem as coisas de forma caprichosa. Colchões se debruçam nas paredes retorcidas, metendo-se entre fendas de lajes demolidas, como se fossem línguas. Cobertores projetados no ar se penduram nos fios elétricos, que se entrelaçam sobre as ruas como teias de aranha, sustentando os postes, numa inversão de papéis.

Blocos inteiros de concreto viraram pó. Mas um óculos de leitura caiu com as lentes intactas, quebrando apenas uma de suas hastes. Um peão de brinquedo, feito de papel machê vermelho vivo, equilibra-se sobre sua base esférica, apoiado num pedaço de tijolo de concreto. Uma bola de plástico amarela permanece cheia de ar, enquanto portas de aço se dobram como se fossem de papel. As roupas no ateliê de costura Veneza aguardam suas donas, intactas em seus cabides. Fardas militares de camuflagem e coletes à prova de bala continuam perfeitamente dobrados nas prateleiras de um depósito.

Às vezes, os mísseis arrancam a fachada inteira de um apartamento, deixando visível um quarto ou cozinha, com todos os seus móveis e objetos, como se fosse uma casa de bonecas. Na parede de um escritório, um cartaz de campanha pede votos para cinco xeques candidatos da Coalizão Iraquiana, do aiatolá Mohamad al-Moussaoui, líder xiita no Iraque. E do lado de fora de uma loja de baterias e alarmes antifurto, a folhinha de um calendário com a foto de Nasrallah, publicado pelo Comitê de Apoio à Resistência Islâmica, ainda está no dia 12 de julho de 2006, ou 16 de jamade de 1427, segundo o calendário muçulmano. O tempo parou em Haret Hreik.

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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