Expansão amigável, do norte para o sul e do leste para o oeste, prepara terreno para eventual guerra de secessão
A geografia humana do Líbano sofre uma transformação silenciosa. Comunidades xiitas estão se alastrando do sul para o norte, e, em menor medida, do leste para o oeste, formando um desenho que lembra uma espinha dorsal com suas ramificações nervosas. É uma conquista amigável. Num movimento de pinça, as famílias xiitas compram faixas de terras em torno de cidades e até de “cazas” inteiras, como se chamam as regiões libanesas. O interior das áreas “cercadas” é abandonado pelos moradores cristãos e sunitas.
A área “mica”, diz o político libanês-brasileiro Carlos Eddé, empregando uma gíria que aprendeu em São Paulo, onde viveu entre 1975 e 2000, e aonde vem visitar as duas filhas e a mãe. “Estão tentando comprar terrenos a peso de ouro. Preço não importa”, diz Eddé, um cristão maronita, dirigente do Bloco Nacional, que apóia o governo do primeiro-ministro Fuad Siniora e as forças do 14 de Março, que resistem à influência da Síria sobre o Líbano. Ele acredita que o Hezbollah, movimento xiita financiado pelo Irã e apoiado pela Síria, esteja custeando essas aquisições de terras.
O objetivo, analisa Eddé, é conectar todas as regiões de maioria xiita – uma comunidade cuja taxa de natalidade é o dobro ou o triplo da dos cristãos e dos sunitas – para, em caso de uma guerra de secessão do Líbano, o Hezbollah assumir o controle sobre um território contínuo. Algumas dessas “cazas”, como as de Jbeil (antiga Biblos) e Kesrouan, no centro-oeste do país, já tiveram no passado presença xiita. Outras são áreas antes predominantemente drusas e cristãs, esvaziadas pela guerra de meados do ano passado entre o Hezbollah e Israel. Assim, ironicamente, a estratégia de ocupação é facilitada por uma desocupação causada indiretamente pelo próprio Hezbollah.
Uma nova guerra civil no Líbano – que, todos concordam, seria mais devastadora ainda que a de 1975 a 1990, que deixou mais de 100 mil mortos – poderia ser evitada por um acordo político entre as forças do 14 de Março (formadas depois do assassinato do ex-primeiro-ministro Rafic Hariri em 2005) e as da oposição, lideradas pelo Hezbollah. Mas isso parece cada vez menos factível, reconhece Eddé, encarregado em 2004 de intermediar, sem sucesso, a adesão do general cristão maronita Michel Aoun à aliança do governo. Aoun, antes o maior inimigo da Síria, deixou-se cooptar, em troca da chance de se tornar presidente (e de recuperar sua fortuna confiscada).
O Hezbollah retirou-se do governo de coalizão no fim do ano passado, por discordar da aprovação, pelo gabinete, da criação de um tribunal internacional para julgar os suspeitos do atentado a bomba contra Hariri – quatro ex-comandantes das forças de segurança, todos ligados à Síria e presos a pedido do promotor designado pela ONU, o alemão Detlev Mehlis. Desde então, o presidente do Parlamento, Nabih Berri, líder da facção xiita Amal, aliada do Hezbollah, não convoca sessões. “Eles impedem a realização do diálogo onde ele pode ser feito”, diz Eddé.
MÉTODO MACABRO
As forças do 14 de Março obtiveram 71 das 128 cadeiras do Parlamento nas eleições de 2005 e têm também maioria no gabinete de união nacional. O político libanês-brasileiro recorda os assassinatos do deputado sunita Walid Eido e do ministro da Indústria, Pierre Gemayel, cristão maronita, e faz uma observação macabra: “Não podendo forçar a queda do governo ou mudar a composição do Parlamento pelas vias legais, foi achado um meio de impedir o quórum: matando deputados e ministros.”
A questão-chave é o julgamento dos suspeitos ligados à Síria. Eddé e outros políticos e analistas no Líbano acham que a condenação desses militares poderia marcar o início do fim do regime sírio. Cada avanço rumo ao julgamento deles é pontuado por ações violentas. A própria guerra de julho de 2006 foi desencadeada pela captura de dois soldados israelenses pelo Hezbollah, no momento em que as investigações chegavam a um desfecho. No domingo passado, uma bomba matou seis soldados da ONU no sul do Líbano, depois que o Conselho de Segurança aprovou a criação do tribunal internacional para julgar os suspeitos.
Outro embate se avizinha. A partir de setembro, o Parlamento deveria eleger um sucessor para o presidente Émile Lahoud, há nove anos no cargo. Lahoud é apoiado pela Síria, que foi forçada a retirar suas tropas do Líbano depois do assassinato de Hariri, mas mantém a influência no país vizinho por meio do presidente, do Hezbollah e de seus aliados. Eddé não vê saída para essa disputa: a eleição de mais um presidente pró-Síria seria considerada intolerável pela maioria governista; a escolha de um anti-Síria desencadearia uma reação violenta do poderoso país, por meio de seus aliados locais.
CLIMA HOSTIL
A polarização e o nível de hostilidade entre os dois grupos – sunitas e cristãos, de um lado, e xiitas e os partidários de Aoun, de outro – foram ilustrados por uma gafe cometida pela âncora da TV NBN, pertencente a Berri. Depois de noticiar o assassinato do deputado Eido, no dia 13, ela comentou com um colega, sem perceber que seu microfone continuava ligado: “Então, por que demoraram tanto para matá-lo? Ahmed Fatfat (outro deputado sunita) deve ser o próximo. Estou fazendo a contagem.” O colega deu risada. Ambos foram demitidos.
Além dos atentados a bomba, há freqüentes escaramuças entre jovens. Mas é visível o esforço das lideranças dos dois lados de evitar que a hostilidade degenere em guerra civil. “O Hezbollah ainda não está pronto para isso”, analisa Eddé. “Eles ainda não têm um território só deles.”
No médio ou no longo prazo, no entanto, a consolidação de uma base territorial do Hezbollah contínua ao longo do território libanês poderá se somar a um domínio xiita sobre o centro-sul do Iraque e à conquista da Faixa de Gaza pelo Hamas (grupo sunita apoiado pelo Irã e pela Síria). Um cenário impensável antes da invasão do Iraque pelos EUA, há apenas quatro anos.
O Estado fez contato com a assessoria de imprensa do Hezbollah em Beirute. Uma entrevista com um dirigente chegou a ser prometida, mas não se concretizou.
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