Xiitas e sunitas entram em confronto

Choques em Beirute, os mais graves desde que o Hezbollah passou a exigir a renúncia do primeiro-ministro, matam 1 e ferem 21

BEIRUTE – No incidente mais grave desde que o Hezbollah e seus aliados cristãos ocuparam na sexta-feira duas praças de Beirute para exigir a renúncia do primeiro-ministro Fuad Siniora, um jovem xiita foi morto ontem em confronto com sunitas. Outros choques entre os grupos deixaram 21 feridos. Os conflitos elevaram a tensão na cidade, tomada por tanques e caminhões do Exército, que circundam a área onde dezenas de milhares de xiitas – e alguns cristãos – protestam contra o governo. Muitos temem uma escalada para uma nova guerra civil.

Os confrontos ocorreram quando xiitas que voltavam da manifestação passaram por bairros predominantemente sunitas, para os quais famílias xiitas se têm mudado nos últimos anos. O xiita Ahmed Ali Mahmud, de 20 anos, foi morto a tiros. Os dois grupos se enfrentaram também com pedras e bastões de madeira.

Depois dos choques, Nabih Berri, o líder da Amal, grupo xiita aliado ao Hezbollah, e presidente do Parlamento, pediu a seus simpatizantes que evitassem confrontos. Durante o dia, Siniora, que é sunita, e líderes religiosos cristãos fizeram apelos pela união dos libaneses.

‘Vamos continuar firmes em nossa posição’, disse o primeiro-ministro, recusando-se a atender a exigência do Hezbollah, da Amal e de seu principal aliado cristão maronita, o general Michel Aun, para que ele renuncie. ‘Estamos do lado certo.’ Cinco ministros do Hezbollah e da Amal e um ligado ao presidente cristão maronita Emile Lahoud, pró-Síria, deixaram o governo, depois que o gabinete aprovou a instalação de um tribunal internacional para julgar os suspeitos do assassinato do primeiro-ministro Rafic Hariri, em março de 2005. As suspeitas recaem sobre a Síria, que apóia o Hezbollah.

Os grupos xiitas e seus aliados cristãos passaram a exigir mais ministérios, para obter a representação mínima de um terço mais um no gabinete, que dá direito a veto. A maioria sunita e cristã no governo recusou. Na sexta-feira, após convocação do líder do Hezbollah, o xeque Hassan Nasrallah, 800 mil pessoas se reuniram na Praça dos Mártires e na Praça Riad al-Sullah, em frente do Grand Serail, o palácio do governo.

O arcebispo maronita de Beirute, Boulos Mattar, rezou uma missa ontem dentro do palácio, onde cerca de 20 ministros estão abrigados desde o assassinato do ministro da Indústria e do Comércio, o cristão maronita Pierre Gemayel, no dia 21. ‘A cristandade e o Islã estão transmitindo uma mensagem de que devemos estar unidos. Paremos de derramar sangue.’

Fora dali, na praça em frente do palácio ocupada pelos manifestantes, outras vozes eram ouvidas. ‘Estou aqui porque o xeque Nasrallah pediu, em primeiro lugar, e em segundo, para derrubar esse governo’, explicou placidamente Hawra Yacoub, estudante secundarista de 18 anos, tez branca e grandes olhos verdes contrastando com a roupa preta que só deixava o rosto de fora. À pergunta sobre se ela não temia uma guerra civil, Hawra, que significa ‘a mais bela’, respondeu: ‘Só temos medo de Deus. O que ele escreveu é o que vai acontecer.’

‘Siniora foi comer com (a secretária de Estado americana) Condoleezza Rice enquanto os israelenses matavam o nosso povo com armas dadas pelos americanos’, disse o mecânico Youssef Dahan, de 40 anos, referindo-se ao período da guerra entre Israel e o Hezbollah, em julho e agosto. ‘Nosso coração está queimando em Dahye’, continuou Dahan, falando do bairro xiita no sul de Beirute. ‘O governo de Siniora é dos EUA.’ Questionada se o Líbano ficaria melhor com um governo de influência síria, Jamila, dona de casa de 36 anos e cunhada de Dahan, disse: ‘Os sírios apóiam o Líbano contra Israel.’

Desde o conflito com Israel, o Hezbollah e a Amal têm procurado dar projeção nacional a seu movimento, originalmente circunscrito aos xiitas, que representam cerca de 40% da população (os sunitas são uns 35% e os cristãos, 25%). Daí a importância da presença dos cristãos. O Estado não encontrou sunitas nas duas praças, mas mesmo os cristãos estavam em pequeno número. Para aumentar a representatividade, a Amal mandou alguns de seus militantes usarem a cor laranja do Movimento Patriota Livre, de Aun.

Era o caso ontem de Abdullah Khafie, um estudante de administração de 23 anos. Morador do reduto xiita de Sarafand, no sul do Líbano, Khafie circulava com chapéu em formato de sombrinha e pano laranjas sobre o ombro. À pergunta sobre se os xiitas e cristãos estavam se unindo contra os sunitas, Khafie respondeu com um sorriso: ‘Não sou contra os sunitas. Somos um povo só. O problema é que os EUA estão decidindo por eles.’

Enquanto os xiitas ocupavam as praças, os cristãos pró-Aun se concentravam na rua que as une. ‘Estamos aqui pois somos libaneses’, disse Tony Dagher, dono de uma loja no vilarejo cristão maronita de Al-Mrouj. ‘Siniora recebe cobertura de americanos, sauditas, egípcios. Quando o Hezbollah enfrentou Israel, não vi nenhum sírio ou iraniano lutando. Eram todos libaneses.’

Publicado em O Estadão. Copyright: Grupo Estado. Todos os direitos reservados.

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