Repórter do Estado acompanhou preparativos para manifestação relâmpago em favela
DAMASCO – Milhares de pessoas saíram ontem às ruas em muitas cidades da Síria, para protestar contra o regime de Bashar Assad e testar a sinceridade do governo no cumprimento do plano de paz do ex-secretário da ONU Kofi Annan, que inclui a não repressão a manifestações pacíficas. As forças de segurança dispersaram os protestos e ao menos cinco manifestantes e um militar foram mortos ontem – nada comparável com a matança cotidiana de antes da entrada em vigor do cessar-fogo, na manhã de quinta-feira.
Soldados apoiados por tanques vigiavam as entradas das cidades, descumprindo um dos seis pontos do plano de Annan, que prevê a retirada das tropas e armamento pesado ao redor dos centros urbanos. O repórter do Estado esteve em Douma, a 26 km de Damasco, e passou por sete barreiras militares, que incluíam dois tanques e cinco ônibus de transporte de tropas. Armados com fuzis, os soldados do Exército averiguavam os documentos dos passageiros e revistavam os porta-malas.
Em Damasco, nas portas das mesquitas, de onde saem as manifestações depois da oração do meio-dia da sexta-feira, havia carros com agentes da Mukhabarat, a temida (e pouco discreta) polícia política síria. Um morador contou ao Estado que na mesquita de Al-Mezze al-Kbir, no bairro de Mezze, agentes entraram durante a oração, xingaram os fieis e quebraram vidros das janelas.
Munição real e bombas de gás lacrimogêneo foram usadas para dispersar os manifestantes, que se reuniram em grupos não muito grandes. De acordo com organizações de direitos humanos, citadas pelas agências internacionais, duas pessoas foram mortas quando tentavam chegar a um protesto em uma praça central na cidade de Hama, no centro-oeste do país. Outra pessoa foi morta ao sair de uma mesquita em Nawa, na província de Deraa, no sudoeste, onde o levante começou em março do ano passado; uma quarta em Salqeen, na província de Idlib (noroeste) e a quinta em Deraya, na província de Damasco.
A agência oficial de notícias Sana responsabilizou a oposição por duas das mortes. Segundo a versão do governo, o homem em Salqeen foi morto por um “grupo terrorista armado” e um dos mortos em Hama foi atingido pelo disparo de um manifestante. Os “terroristas”, segundo a agência, teriam matado também um major do Exército quando ia de carro para o trabalho.
O repórter do Estado assistiu aos preparativos de uma dessas manifestações, na favela de Mezze al-Bassatin, a apenas 5 km do centro de Damasco. Os jovens manifestantes se coordenavam pelo celular. Falando em códigos, com receio de interceptações, eles trocavam informações sobre em quais mesquitas da favela havia maior presença de soldados do Exército e de agentes da Mukhabarat.
Quando finalmente definiram o local, cerca de 30 jovens e crianças se reuniram, gritando “Hurria” (liberdade) e “Thawra” (revolução). Mas a manifestação durou apenas alguns segundos, quando outros 20 se aproximavam para participar. Rapidamente chegaram soldados e homens à paisana, armados de fuzis. Ao menos um rapaz foi preso. Ao longe, antes da manifestação, o repórter ouviu disparos.
Havia mais soldados que manifestantes: dois ônibus verdes de transporte de tropas do Exército estavam parados na entrada da favela, além de jipes Toyota Land Cruiser beges. Homens à paisana também circulavam em motos e carros, e eram facilmente reconhecidos como agentes da Mukhabarat.
Moradores contaram que as prisões, incluindo de pré-adolescentes, são frequentes na favela. Uma menina de 14 anos foi parada por agentes há dois meses quando ia para a escola, de acordo com seu pai. Obrigaram a garota a colocar as mãos na nuca e a encostar numa parede. Queriam que ela mostrasse a carteira de identidade, que só é emitida aos 15 anos. Ela mostrou os livros da 8a. série e a liberaram. A menina diz que viu um ônibus com adolescentes presos, as mãos atadas para trás, com algemas de nylon.
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