Lourival Sant`Anna
Maldita hora, para Hillary Clinton, em que inventaram esse tal de email. Hoje em dia, ela deve ter um sobressalto antes de clicar em “enviar”. Ou pelo menos uma pessoa comum teria. Se seu adversário Donald Trump é um peixe que morre pela boca ao microfone, Hillary e seus assessores se entregam com os dedos no teclado. O FBI anunciou ter descoberto 14.900 emails que não estão na lista das 30 mil mensagens que o Departamento de Estado reconhece terem sido trocadas por Hillary e seus assessores por meio de um provedor particular, em vez do sistema usado pelo governo. A suspeita é a de que Hillary usou o provedor instalado em sua casa, no período em que foi secretária de Estado, no primeiro mandato de Barack Obama — 2009 a 2013 —, para esconder tráfico de interesse da vigilância do governo. E alguns emails vazados sugerem exatamente isso: doadores da Fundação Bill, Hillary e Chelsea Clinton tendo acesso privilegiado ao governo.
Diante da descoberta do FBI, o juiz federal James E. Boasberg exigiu na segunda-feira que o Departamento de Estado comece a entregar os emails antes do prazo inicialmente estabelecido, 14 de outubro — menos de um mês antes da eleição presidencial de 8 de novembro. Ele ordenou que um novo calendário seja apresentado na nova audiência, marcada para 22 de setembro. Os funcionários do Departamento alegam que precisam de tempo para separar emails pessoais dos de trabalho, e para eliminar as duplicações de mensagens. A defesa de Hillary afirma que não sabe de que tratam esses novos 14.900 emails — se são ou não repetições dos que estão no pacote dos 30 mil.
O que se sabe é que o FBI classificou os emails e os separou em oito discos rígidos: um com emails e anexos enviados e recebidos por Hillary, e que não haviam sido entregues antes pela sua defesa; um com documentos sigilosos; um só com emails respondidos por Hillary; e cinco de outros usuários. De acordo com Tom Fitton, presidente da organização não-governamental Judicial Watch, os 14.900 emails estão no primeiro disco rígido, dos enviados e recebidos diretamente por Hillary, e não declarados antes. A ONG, de tendência conservadora, e voltada para a ética na política, foi autora do pedido na Justiça, em maio de 2015, para que todos os emails que trafegaram no servidor pessoal de Hillary lhe fossem entregues, com base na Lei de Liberdade da Informação. A ação teve início depois da revelação de que Hillary tinha usado o servidor pessoal. O cronograma da entrega dos emails é negociado entre advogados do Departamento de Estado e a ONG.
“Estamos contentes que o tribunal tenha acelerado o cronograma do Departamento de Estado”, disse Fitton. “Estamos tentando trabalhar com o Departamento de Estado nisso, mas, vamos ser claros: eles têm procrastinado e barrado a entrega desses arquivos. Eles estão com muitos deles desde 25 de julho, e nenhum arquivo sequer foi entregue, não entendemos por quê.”
Uma nota da assessoria de imprensa do Departamento de Estado afirma que o órgão se prontificou a entregar voluntariamente os emails, mas que dezenas de milhares deles precisam ser cuidadosamente avaliados para separar as mensagens de trabalho das pessoais. “O Departamento ainda não teve a opostunidade de completar uma revisão dos documentos para determinar se eles são arquivos do órgão ou se são duplicações de documentos que o órgão já entregou por meio da Lei de Liberdade de Informação. Não podemos comentar mais porque o tema está sob disputa judicial.”
Os 14.900 emails “novos”, que não tinham sido declarados, foram entregues ao Departamento de Estado no dia 5 pelo FBI. O diretor da polícia federal americana, James B. Comey, disse que os investigadores não encontraram evidência de que as mensagens foram intencionalmente apagadas na tentativa de oculta-las da Justiça. Podem ter sido apagados ou para esvaziar a caixa postal ou por acharem que eram pessoais, admitiu Comey. Os funcionários do Departamento de Estado separaram os emails entre de trabalho e pessoais olhando os assuntos e com buscas de palavras. Já os investigadores leram linha por linha. No dia 5 de julho, ao apresentar suas conclusões depois de um ano de investigação do caso, Comey declarou: “Embora não tenhamos encontrado evidências de que a secretária Clinton e seus colegas pretenderam violar as leis que regem o manejo de informação sigilosa, há evidência de que eles foram extremamente descuidados no manejo de informação muito sensível, altamente sigilosa”. Ele não recomendou ao Ministério da Justiça, que exerce o papel de Procuradoria-Geral da República nos EUA, a abertura de processo contra Hillary.
Numa pista de parte das atividades que Hillary e seus assessores podem ter querido manter longe do alcance da rede do governo, e portanto do público, por meio da Lei de Liberdade de Informação, alguns dos emails mostram que funcionários da Fundação Clinton fizeram gestões em favor de doadores estrangeiros da entidade para que tivessem acesso ao Departamento de Estado.
Num dos casos, Doug Band, antigo assessor do ex-presidente Bill Clinton e atual funcionário da fundação, intercede pelo empresário nigeriano de origem libanesa Gilbert Chagoury, que doou entre US$ 1 milhão e US$ 5 milhões à entidade (os valores das doações são informados por faixas). “Precisamos que Gilbert Chagoury fale com a pessoa de substância referente ao Líbano”, escreveu Band em um email para Huma Abedin e Cheryl Mills, ambas assessoras próximas de Hillary. “Como vocês sabem, ele é um cara chave lá e para nós, e é amado no Líbano. Muito importante.” Abedin respondeu que falaria com Jeffrey Feltman, ex-embaixador dos EUA no Líbano, e que na época era secretário assistente de Estado para o Oriente Médio. Feltman garante que não se encontrou com o empresário: “Gilbert Chagoury nunca me contactou. Eu nunca o encontrei nem falei com ele. Ninguém nunca me disse que ele estava me procurando”.
Um funcionário da campanha de Hillary disse ao jornal The Washington Post que a gestão era proveitosa para o governo americano: “Chagoury estava simplesmente querendo compartilhar sua visão sobre a eleição libanesa (de 2009) com a pessoa certa do Departamento de Estado, para quem essa informação poderia ser útil. Ao procurar fornecer informação, ele não estava querendo que o Departamento de Estado fizesse algo por ele”.
Outro email, destinado a Hillary, envolve o empresário ucraniano Victor Pinchuk, do setor siderúrgico, que doou entre US$ 10 milhões e US$ 25 milhões à fundação. “Tomei café da manhã com Pinchuk”, escreveu, em junho de 2012, Melanne Verveer, uma americana de origem ucraniana que trabalhava para o Departamento de Estado. “Ele vai encontra-la no almoço do Brookings (instituto de pesquisas em Washington).” Pinchuk foi à festa de aniversário de 65 anos de Bill Clinton em Los Angeles, em 2011, e chegou a emprestar seu jatinho para o casal. Genro de Leonid Kuchma, que foi presidente da Ucrânia entre 1994 e 2005, Pinchuk intercedeu em favor do governo ucraniano, criticado pelos EUA por violações dos direitos humanos e por sua proximidade com a Rússia.
De acordo com levantamento da agência Associated Press, metade das pessoas do setor privado recebidas por Hillary quando era secretária de Estado fez doações diretas ou indiretas à fundação.
Para o presidente da Judicial Watch, os emails “mostram que a Fundação Clinton, os doadores e operadores trabalharam com Hillary Clinton em potencial violação da lei”. Trump acusou Hillary de atuar no esquema “pay to play” (algo como “pague para fazermos”). Trump disse que se arrependeu de ter ele mesmo sido um dos 200 mil doadores da fundação no passado.
Josh Schwerin, porta-voz da campanha de Hillary, defendeu a candidata dizendo que a Judicial Watch “é uma organização de direita que tem atacado os Clintons desde os anos 90”, e garantiu que, como secretária de Estado, ela “nunca agiu motivada por doações da Fundação Clinton”.
Desde sua criação, em 1997, a entidade recebeu US$ 2 bilhões em doações de pessoas, empresas, governos e outras fundações, para executar 3.500 projetos sociais em 180 países. No Brasil, ela patrocinou, por exemplo, um projeto do Ministério da Saúde para o desenvolvimento e acesso a remédios contra a aids.
Alguns doadores são politicamente controversos, como o governo da Arábia Saudita, que contribuiu com US$ 10 milhões a US$ 25 milhões. Além disso, a entidade Amigos da Arábia Saudita, ligada à família real, deu US$ 1 milhão. Aliada dos EUA, a Arábia Saudita é a fonte de propagação da seita wahabita, que inspira a Al-Qaeda e o Estado Islâmico, e no passado entidades e famílias ligadas à monarquia patrocinaram esses e outros grupos terroristas. Além disso, o reino é rival do Irã, e pressionou contra o acordo nuclear que pôs fim às sanções contra o país.
Não muito familiarizado com essas questões da geopolítica, Trump preferiu atacar Hillary por sua fundação ter recebido doações sauditas, porque isso colocaria em xeque suas posições feministas, já que o reino reprime os direitos das mulheres. Outros países doadores incluem os Emirados Árabes Unidos, Catar, Kuwait e Omã, que também são monarquias sunitas da Península Arábica. Outra fonte delicada de doação foi a Argélia, também criticada por violações dos direitos humanos. Segundo a fundação, a doação argelina, de US$ 500 mil, foi a única que violou um acordo firmado em 2008 com o governo americano. A Argélia não está na lista de exceções de países que consta desse acordo, e portanto a fundação teria de ter pedido autorização do escritório de ética do Departamento de Estado.
No dia 9 de agosto, Bill Clinton anunciou que a fundação não aceitará mais doações de empresas nem do exterior se sua mulher for eleita presidente. Ele disse também que em setembro será realizado em Nova York o último fórum da Iniciativa Global Clinton, independentemente do resultado da eleição. O evento anual reúne personalidades do mundo inteiro para discutir os problemas sociais e arrecadar fundos para projetos. Clinton prometeu ainda deixar o conselho da fundação se Hillary se eleger.
Mas o estrago está feito. Segundo pesquisa de junho para a agência de notícias Bloomberg, 72% dos eleitores se incomodam com as doações recebidas pela fundação enquanto Hillary era secretária de Estado. Noutra sondagem, divulgada no dia 16 pela rede NBC, apenas 11% dos entrevistados disseram considerar Hillary “honesta e confiável”. Em relação a Trump, 16% afirmaram isso. Em compensação, apenas 17% acreditam que Trump tem a “personalidade e temperamento” para ser presidente, enquanto 42% acham isso de Hillary. Na intenção de votos, a candidata democrata está na frente do republicano por 50% a 41%.
Hillary deveria mandar um email a Trump agradecendo por ser o adversário que é.
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