Marcelo Bratke resgata melodias populares

O pianista brasileiro confronta canções tradicionais brasileiras e clássicos na Inglaterra

LONDRES – “Dorme menino, que a Cuca vem pegar…” A memória vai buscar num passado longínquo e a milhares de quilômetros as imagens equivalentes àqueles acordes. No Wigmore Hall de Londres, uma das mais importantes casas de concerto do mundo, o pianista brasileiro Marcelo Bratke toca A Prole do Bebê, de Villa-Lobos. Trechos das melodias populares brasileiras se chocam com o dodecafonismo numa noite de Webern, Schoenberg e Berg na primeira parte, Villa-Lobos, Milhaud e Nazareth na segunda.

O confronto é o fio condutor de Bratke, de 35 anos, há cinco em Londres. Depois de um CD só de Villa-Lobos, o pianista se prepara para gravar em outubro um outro apenas de Stravinsky, a obra completa para piano. Será o quinto CD de sua carreira fulminante, aclamada pela crítica européia – “com um senso do ritmo e da voz interna da música que empresta caráter e presença até aos momentos de contraponto mais austero”, publicou o jornal The Independent. 

Coerente com o ciclo raci

onal-naïf-racional, que o conduziu do primeiro CD com Webern, Schubert, Bach e Berg, ao segundo com Nazareth e Milhaud, passando de novo por Berg, Webern e Krenek, agora no quarto com Villa-Lobos, e no quinto com Stravinsky, o pianista pretende gravar depois Carlos Chávez, um compositor mexicano que se inspirou na cultura indígena de seu país. Antes, porém, em julho, agosto e setembro, vai ao Brasil, para uma série de concertos em São Paulo, Rio, Porto Alegre e Curitiba. 

No Masp e na reinauguração do auditório do MAM de São Paulo (segundo o projeto original de Lina Bo Bardi), Bratke pretende mostrar o que aconteceu com o tema na história da música, “de Gibbons a Cage”, ou “de Viena ao Rio”, como quis a revista londrina Time Out ao comentar seu trabalho. A agenda de Bratke para este ano inclui também passagens pela Alemanha e França (onde vai tocar Nazareth, Milhaud e Villa-Lobos num festival de arte brasileira que terá também o Grupo Corpo e uma peça de Nelson Rodrigues, em novembro). 

Mas o pianista fez uma pausa para conversar com o Caderno 2 em seu apartamento em Knightsbridge, bairro caro de Londres, onde mora com a pintora Mariannita Luzzati. 

Caderno 2 – Qual o papel dos opostos no seu trabalho? 

Marcelo Bratke – É uma tendência desde criança. Eu ouvia muito rádio quando era menino. Gostava de gravar. Tinha um gravadorzinho e um radinho. Então, eu fazia fitas que tivessem opostos que se chocassem e se atraíssem desde o início. Eu gravava música caipira e Kurt Weil, por exemplo, e ficava ouvindo aquela coisa. Depois, teve uma época em que gostei muito de cinema. Por exemplo, gostava muito do filme Oito e Meio, do Fellini. Era meu vício. Eu vi o filme umas 80 vezes. Porque era um filme que tinha bastante essas coisas do contraste. 

Caderno 2 – Como isso determina seu repertório? 

Bratke – Eu gosto de fazer com que as peças musicais conversem entre si, se choquem, briguem, porque eu acho que elas são vivas, eu acho que uma peça musical é como uma pessoa. Para ajudar com que ela seja expressiva, eu gosto de colocar uma peça musical em confronto com uma outra. Assim, eu fortifico cada qualidade dessa peça musical e da outra também. Se eu tocar uma peça de Mozart, um recital de piano, por exemplo, e tocar depois uma peça de Heine, que é um compositor muito próximo de Mozart, de uma certa maneira eu não vou ajudar os dois compositores nem as duas músicas. Vai ficar uma coisa muito linear. Esse recital de Londres começa muito tenso, com uma música muito intelectual de Webern, e vai relaxando para Schoenberg, depois relaxa mais ainda para Berg, daí um intervalo, acaba-se a coisa da música vienense e vai para um lado mais espontâneo através de Villa-Lobos, relaxa-se ainda mais em Darius Milhaud e termina em Nazareth, relaxado. 

Caderno 2 – Como é que entra o elemento brasileiro na sua interpretação? 

Bratke – Por exemplo, Darius Milhaud, que fez Saudades do Brasil. Ele foi para o Brasil por volta de 1919, ficou conhecendo Villa-Lobos, que o introduziu à música de Ernesto Nazareth. Darius Milhaud disse que entendeu realmente a alma brasileira através da música de Nazareth. Saudades do Brasil é uma peça feita pelo Milhaud em Paris, uma peça do pós-impressionismo francês, mas eu gravei essa peça pensando no João Gilberto. Eu quis trazê-la muito mais para o lado brasileiro do que para o lado francês, digamos assim. É uma peça que tem muita profetização da bossa nova, por exemplo. 

Caderno 2 – Você sente uma reação? As pessoas decodificam isso? 

Bratke – Eu acho que é super bem-vindo. A gente nunca sabe o que acham mesmo. Mas as críticas foram todas excelentes. Agora, é bem diferente minha interpretação do Darius Milhaud do que por exemplo de um pianista russo que gravou isso um tempo atrás. Aí você já imagina a confusão cultural. Mas meu trabalho é uma tentativa multicultural porque eu acho que o Brasil é multicultural, é um país totalmente miscigenado. Por exemplo, a minha família tem uma parte alemã. Então talvez eu tenha facilidade para Berg, Webern, esses austríacos também. E o próprio Brasil te dá essa gama de cores para observar tudo dessa maneira. É um país que não tem só uma direção, você olha para todos os lados. Acho uma vantagem para nós, nesse sentido. Aqui (em Londres) também é internacional, mas é tudo meio gueto, sem mistura. Você acaba tendo visões em molduras. 

Caderno 2 – Dá muito trabalho ficar percorrendo assim as matrizes, não? 

Bratke – É um trabalho legal. Koellreuter e Sérgio Bizet foram muito legais comigo nesse sentido, eles me abriram essa porta. É muito mais gostoso fazer isso do que por exemplo tocar um concerto de Tchaikovsky dez vezes pelo interior da Inglaterra, como um pianista caixeiro-viajante faria. É uma coisa deprimente. Concerto de Tchaikovsky já é um hino, é como cantar o Hino à Bandeira, todo mundo já sabe. 

Caderno 2 – As pessoas buscam na música erudita os mesmos elementos básicos que se procura em todo produto cultural brasileiro — alegria, vivacidade, colorido, espontaneidade? 

Bratke – Buscam. 

Caderno 2 – E encontram? 

Bratke – Encontram, mas encontram também uma coisa inesperada, uma certa melancolia que há no Brasil. Por exemplo, os tangos, o Nazareth. Acho que tem uma certa melancolia na nossa música e no nosso espírito que surpreende um pouco. Mesmo na Prole do Bebê tinha umas concisas tão tristes, eu acho. Nas Saudades do Brasil também, essa coisa do João Gilberto, que ele vai cantando e é tão alegrinho, mas no fundo tem uma dorzinha. 

Caderno 2 – Você não acha que isso é meio lusitano? 

Bratke – Acho. É aquela coisa de ver o sol se pondo. É uma tristeza que é outra coisa. Você sabe que, falando com amigos ingleses, descobri que ser nostálgico aqui na Inglaterra é pejorativo? No Brasil, a gente cultiva isso um pouco. 

Caderno 2 – As pessoas ainda procuram o exótico e o folclórico no artista brasileiro? 

Bratke – Acho que sim. Cabe aos brasileiros mostrar que não é só isso que tem. 

Caderno 2 – Até na música erudita dá para sentir isso? 

Bratke – Ah, por exemplo, uma fundação de pianistas que anunciou meu concerto aqui em Londres fez um textinho assim: “Repertório sensacional que vai da vanguarda vienense, da intelectualidade da Viena moderna aos ritmos exóticos da América do Sul e do Brasil.” E era uma coisa séria. Mas é uma coisa que a gente tem, mesmo. Isso, não dá para tirar. E há diferenças, mesmo. A música austríaca e alemã, por exemplo, é dualista, cheia de explosões, realmente expressiva. A música inglesa nunca chega a um clímax, é um antiorgasmo total, aquela coisa do campo das ovelhas, mesmo. Um pouco esquiva, como os ingleses, que nunca te olham nos olhos. 

Caderno 2 – E a música brasileira, como você descreveria? 

Bratke – É uma música extremamente colorida, é realmente um festival de ritmos, rica em espontaneidade, cheia de influências. Uma música apenas brasileira é impossível. É uma mistura real de cultura africana, portuguesa, italiana, alemã, tudo. 

Caderno 2 – E a platéia brasileira, é muito diferente da platéia daqui? 

Bratke – Todas as platéias são diferentes. Mas mesmo a do Rio com a de São Paulo, mesmo a de São Paulo num dia e no outro. É uma questão energética que não tem muito a ver com a cultura. É o acaso. 

Caderno 2 – E o consumidor de música clássica tem mais ou menos o mesmo perfil no mundo inteiro? 

Bratke – O consumidor de música clássica tem um perfil conservador. Meu sonho é que esse público seja mudado. Não que mudem as pessoas que vão ao concerto. Mas que mude aquilo que as pessoas que vão ao concerto querem ouvir. Acho que é um pouco automatizado, padronizado, uma coisa meio de supermercado. Tem muito pouco risco na música de concerto. Eu acho que o concerto em si é uma coisa bastante arcaica. O que interessa é a música, não é o concerto. Eu gosto do piano no concerto, mas prefiro muito mais as gravações. Porque as gravações são realmente a música. O concerto é uma noite glamourosa, é onde entra o egocentrismo do público e do artista no palco, aquela coisa que eu acho que interfere muito na música e não faz bem para ela. Principalmente quando a personalidade do artista é muito egocêntrica e ele quer se mostrar para o público, e esquece que a música é o centro das atenções. O concerto é muito tenso. Eu não gosto daquela relação entre platéia, palco e pianista. O pianista vai fazer uma coisa que a platéia não sabe, que antigamente sabia. Todo mundo tocava alguma coisa. Hoje ele vai lá e faz piruetas. Eu acho isso uma coisa muito ditadora. O interessante é fazer o concerto como se fosse um filme. Então, essas coligações entre as músicas vão transformando tudo numa grande história, que você sai de casa para ir ver. Não é só uma música depois da outra. É uma música que conversa com a outra. Você vai levando o público a sentir alguma coisa. Esse recital do Wigmore Hall, por exemplo, começava tenso e ia relaxando cada vez mais. No fim, o público estava supergostoso, porque o Nazareth entrou na hora certa. Eu consegui musicalmente causar alguma coisa. E não é o que tradicionalmente a música almeja, não é uma coisa romântica. Nós, intérpretes, temos o peso do romantismo na música muito forte. O pianista é o vampiro de casaca, avassalador. 

Caderno 2 – E o público, lânguido… 

Bratke – E o público: “Ah, que coisa triste, maravilhosa, o homem é romântico.” Isso é coisa do século passado. E eu acho que não vai sobreviver muito se todo mundo continuar com essa postura.

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