Um bloco em crise existencial

TEMER E MACRI, EM OUTUBRO: os dilemas do Mercosul foram debatidos em evento na fundação FHC nesta terça-feira/ Beto Barata/ PR/ Divulgação

Volta e meia no Brasil se reabre a discussão sobre se vale a pena “carregar o Mercosul nas costas”. Afinal, em razão do compromisso de só negociar livre comércio em bloco, o Brasil perdeu o bonde dos acordos bilaterais firmados nos últimos anos no mundo inteiro, inclusive por vizinhos como Chile, Colômbia e México.

Entretanto, em um seminário nesta terça-feira na Fundação FHC, em São Paulo, com antigos e atuais integrantes dos governos do Brasil e da Argentina, ficou claro que os dois países não têm a menor intenção de flexibilizar as regras do Mercosul, e muito menos de trilhar destinos separados. Até mesmo a Venezuela (o país, não o regime atual) permanece nos planos estratégicos dos dois líderes do bloco, os mesmos que arquitetaram a suspensão do regime de Nicolás Maduro, por falta de democracia.

EXAME Hoje perguntou a Félix Peña, diretor do Instituto de Comércio Internacional da Fundação ICBC, de Buenos Aires, se as regras da união alfandegária e da Tarifa Externa Comum (TEC) poderiam ser flexibilizadas de modo a permitir que os membros do Mercosul negociassem acordos de livre comércio bilaterais.

“Se a preferência que lhe dou também dou a outro sem consultá-lo, estou liquefazendo a preferência que lhe dei”, respondeu Peña, que foi subsecretário de Integração Econômica do Ministério das Relações Exteriores da Argentina e coordenador nacional do Grupo Mercado Comum do Mercosul entre 1991 e 1992, período de formação do bloco.

“Se o Uruguai, por exemplo, faz um acordo preferencial com a China, a União Europeia ou os Estados Unidos, é para trazer investimentos, para que eles venham produzir no país para atender os mercados de maior porte, do Brasil e da Argentina”, exemplifica Peña. “Ou seja, investir no Uruguai para trabalhar nos mercados argentino e brasileiro como se estivesse no Mercosul, mas sem cumprir as regras do Mercosul.”

Ele explica que a Aliança Pacífico (que reúne Chile, Colômbia, México e Peru desde 2011) não tem uma TEC, e portanto permite que os membros façam individualmente acordos com outros países. “Mas isso manda um sinal de que (a aliança) é prioridade mas nem tanto”.

Peña diz que a solução seria acabar com a união alfandegária, para que cada um pudesse ter sua política tarifária. “Mas isso vai gerar um clima complicado, porque sempre vão existir razões pelas quais um se aborrece com o outro, e a escalada se produzirá com facilidade”. A resposta, concluiu o especialista, para um membro que queira negociar sozinho com outros países, deve ser: “Pode fazer, mas vai sair do Mercosul”.

Peña respondeu também a uma pergunta sobre se Brasil e Argentina não deveriam se livrar de Paraguai e Uruguai, como países menos avançados do bloco. Para ele, trata-se de uma questão “ética”, porque entraria em contradição com as reivindicações por igualdade de tratamento que brasileiros e argentinos fazem quando se reúnem com os países mais poderosos.

“Cada vez que questionarmos assimetrias, vão nos perguntar: ‘O que fazem com Uruguai e Paraguai, para termos como modelo para tratar vocês?’” Para Peña, “é preciso ter coerência, e aplicar no plano interno o que reivindicamos como regras, num plano mais amplo”.

O especialista acha que o Mercosul carece da figura de um “sherpa”, como é chamado no jargão da diplomacia comercial um mediador imparcial, para dirimir as disputas entre os setores econômicos dos países membros. O nome designa os guias de montanhismo. “O sherpa não define qual montanha vai subir, mas sabe guiar o caminho”. Ou seja, não se trata de uma autoridade supranacional que rouba poder dos países membros, mas apenas alguém que organiza as discussões.

Celso Lafer, que foi ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio e das Relações Exteriores em 1992 (no governo de Fernando Collor), e de 2001 a 2002 (final do governo de Fernando Henrique Cardoso), disse que Brasil e Argentina deveriam “aproveitar a afinidade entre os governos” de Michel Temer e Mauricio Macri para serem garantes da “segurança alimentar para o mundo, com grãos e proteína”, e também para avançar nas pautas de interesse da região.

Essas pautas, na sua visão, são: unir o Atlântico e o Pacífico, “domesticar o bolivarianismo e encontrar um caminho para a Venezuela”, ser um “hedge” (reserva de segurança) contra o protecionismo, fortalecer a integração das cadeias de valor das duas indústrias, concluir o acordo União Europeia-Mercosul e trabalhar na convergência regulatória entre as normas técnicas e fito-sanitárias, “tanto para dentro quanto para fora”.

Nesse quesito, o ministro do Interior, de Obras Públicas e Habitação da Argentina, Rogelio Frigerio, citou um exemplo do que não deveria mais acontecer: as autoridades brasileiras levaram 12 meses para aprovar um conservante usado em um doce de leite argentino. “Só precisava que um funcionário de cada lado se pusessem de acordo sobre algo tão simples.”

O momento em que os “criadores das regras” do livre comércio estão questionando essas regras, disse o ministro, referindo-se ao protecionismo contido na eleição de Donald Trump, na aprovação do Brexit e na ascensão do ultra-nacionalismo na Europa, é uma oportunidade para o Mercosul.

Para Frigerio, que foi secretário de Programação Econômica entre 1995 e 1999 (no governo de Carlos Menem), o novo protecionismo americano “obrigou o México a olhar para o Sul” e facilita a aproximação do Mercosul com a União Europeia e com a Aliança Pacífico.

“Se tivéssemos avançado com maior velocidade, essa sensação de estarmos amarrados seria menor ou não teria ocorrido, porque teríamos usado o Mercosul como plataforma para vínculos com outros países do mundo”, lamentou o ministro, voltando à questão formulada por EXAME Hoje.

Ele disse que o Mercosul precisa “concluir os protocolos de promoção e facilitação de investimentos”, assim como abrir para a participação de empresas de outros países do bloco nas licitações de contratos públicos, com regras nas quais “o tema da transparência tenha um papel fundamental”.

“No âmbito bilateral, como integrar as cadeias produtivas é o grande ponto de inflexão”, avaliou o secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência do Brasil, Hussein Kalout. “A Argentina fez recentemente uma proposta para o Brasil, de criar uma regulação fito-sanitária conjunta. O Brasil está estudando.”

Pesquisador licenciado de relações internacionais na Universidade Harvard, Kalout também considera que Brasil e Argentina precisam atrair o México para o Sul, diante de seu abandono pelo governo de Donald Trump, além de atrair investimentos dos países do Leste Asiático, diante do aborto da Parceria Transpacífico (também abandonada por Trump).

Tanto Kalout quanto Frigerio admitiram que os dois países ainda são muito fechados, como mostra a pequena participação do comércio no PIB do Brasil (27%) e da Argentina (23%), e precisam investir na competitividade.

Nesse ponto, Eduardo Velho, economista-chefe no Brasil do banco de investimentos americano INVX Global Partners, que estava na plateia, perguntou que garantias os dois governos podem oferecer de que o populismo não voltará, interrompendo mais uma vez as reformas.

“O grande desafio é acabar com o populismo na região que nos fez tanto dano”, concordou Frigerio. “Precisamos fazer as coisas bem, e que as pessoas notem isso.” Ele disse que o gradualismo é a principal marca do governo Macri na condução das reformas e nas negociações políticas.

“Não é uma opção, mas uma imposição da realidade”, continuou o ministro argentino. “A situação social da Argentina é tremendamente complicada. Um terço da população vive na pobreza.”

Além disso, o governo conta com apoio de apenas um terço dos deputados, um quinto dos senadores e de 5 dos 24 governadores. “É o governo que tem menos força política no último século. Só em 1916 houve um governo com minoria tão marcada.”

Frigerio, que fez parte da equipe econômica de Carlos Menem, observou que, nos governos populistas do casal Néstor e Cristina Kirchner (entre 2003 e 2015), “todas as reformas que havíamos realizado se reverteram e chegamos a uma situação pior que a anterior”. Para ele, “que as reformas sejam sustentáveis no tempo é mais importante do que a velocidade de sua aprovação”.

Eduardo Velho deu mais tarde a EXAME Hoje um exemplo de como a insegurança jurídica abala os investimentos na região: em 2014, o INVX planejava criar um fundo de 250 milhões de dólares para aplicar em infra-estrutura no Brasil, provenientes de pessoas físicas e fundos de pensão, entre outros, de países como EUA e Colômbia. O investimento foi cancelado em maio daquele ano, quando ficou claro que Dilma Rousseff se reelegeria.

“Hoje, a Argentina tem um presidente do Banco Central (Federico Sturzenegger) no qual o pessoal acredita e um bom ministro da Fazenda (Nicolás Dujovne)”, elogia Velho. Mas em outubro haverá eleições para o Congresso na Argentina, aponta o economista, e “sem apoio razoável não passam as reformas”.

Outro grande teste para o Mercosul é a Venezuela, que está suspensa do bloco desde o ano passado, por não satisfazer a Cláusula Democrática nem incorporar as regras comerciais a sua legislação.

“Ambos os países terão de trabalhar de forma magistral, focada no povo venezuelano e nas consequências de uma eventual deterioração da situação interna”, disse Kalout. “No passado, Brasil e Argentina foram permissivos e deixaram que não fosse respeitada a ordem democrática. Isso está em fase de reversão.” O secretário reconheceu que o “cenário na fronteira norte brasileira”, por onde já entraram milhares de venezuelanos fugindo da fome, “talvez seja um dos principais desafios”.

“Claramente chegamos tarde na questão da Venezuela”, criticou Frigerio, referindo-se ao governo Kirchner. “Não só olhamos para outro lado mas acompanhamos, e o que é pior, convidamos (a Venezuela a entrar no Mercosul). E provavelmente a Argentina hoje seria uma Venezuela se a sociedade argentina não tivesse feito uma mudança um ano e meio atrás”, concluiu, referindo-se à eleição de Macri.

A aceitação da Venezuela no Mercosul teve dois componentes: um ideológico, de afinidade entre Hugo Chávez, Luiz Inácio Lula da Silva, Cristina Kirchner, José Mujica, do Uruguai, e Fernando Lugo, do Paraguai; e outro estratégico, de ganhar acesso ao mercado da terceira economia da América do Sul, detentora das maiores reservas de petróleo do mundo.

Com a eleição de Temer, Macri e Horacio Cartes no Paraguai (o uruguaio Tabaré Vázquez é um esquerdista moderado), a afinidade ideológica se desfez. Com a queda do preço do petróleo e a desorganização econômica e política da Venezuela, seu mercado encolheu drasticamente.

Mesmo assim, Brasil e Argentina consideram que, quando a Venezuela se redemocratizar e se reorganizar economicamente, voltará a ser um parceiro atraente. Daí que o país esteja suspenso, mas não será expulso do Mercosul. “Imagine um governo do (líder oposicionista) Henrique Capriles”, disse a EXAME Hoje um funcionário do governo em Brasília, que falou na condição do anonimato. “Resta saber se ele estará tão interessado no Mercosul.” Pois é.

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