As crianças já estão na escola; agora só falta elas aprenderem

Ausências de professores, salários baixos, falta de preparo e de recursos estão entre os entraves na rede pública.

Nas últimas décadas, o Brasil enfrentou heroicamente o desafio da universalização do ensino fundamental. Enquanto menos da metade das crianças entre 7 e 14 anos freqüentava a escola nos anos 50, hoje esse índice é de 96%. Agora que quase todas elas estão lá, a pergunta a fazer é: o que estão aprendendo?

Muito pouco. A realidade é sombria, sobretudo nas escolas públicas, que atendem 90% dos alunos no ensino fundamental e 88% no médio. A Prova Brasil, avaliação feita pelo Ministério da Educação na rede pública, e divulgada há uma semana, mostrou que o aluno médio conclui a 4ª série compreendendo apenas textos curtos e fazendo contas simples. Na 8ª série, ele chega ao nível que deveria ter atingido na 4ª. 

Sempre que se fala na crise do ensino público, os mais velhos vêm com doces recordações da escola pública em que estudaram. Algumas dessas escolas ainda são boas, numa prova de que “público” não é necessariamente sinônimo de “ruim”. Mas são exceção, ecos daquele passado em que as escolas atendiam menos da metade das crianças do País. 

Num certo sentido, a qualidade do ensino público foi atropelada pelo imperativo da universalização. “Claro que é muito importante que a criança vá para a escola, mas os gestores acharam que era só colocá-la lá. Descuidaram da qualidade”, observa a pesquisadora Tania Zagury, do Rio. “Só se quis cumprir a lei.” Desde 1971, o ensino é obrigatório dos 7 aos 14 anos. 

Não há um motivo único para a escola pública no Brasil ser ruim. Comecemos pelos professores. “Nos anos 50, eram meninas educadas, inteligentes, de classe média, que iam ser professoras, porque no mundo machista da época mulher não podia ser outra coisa”, lembra o especialista Cláudio de Moura Castro, de Belo Horizonte. Com os salários que se pagam – o da rede municipal de São Paulo, que não é dos piores, começa em R$ 509 e vai até R$ 2.461 -, a escola pública não atrai profissionais muito brilhantes. “Hoje, professor é quem cursou escolas muito ruins.” 

“Não vejo como qualquer cidadão pode viver com um salário como esse”, diz Adelson Cavalcanti de Queiroz, presidente interino do Sindicato dos Profissionais em Educação do Ensino Municipal de São Paulo (Sinpeem). “Não temos condições de desenvolver aquilo que precisamos para sermos bons profissionais.” 

Como as carreiras das professoras só duram 25 anos (e dos professores, 30), já ingressamos na geração que estudou na escola pública massificada e decadente. “Os professores não sabem ler e escrever”, constata a consultora Guiomar Namo de Mello, de São Paulo. “A escola básica está ruim e vai se multiplicando.” 

A primeira – e óbvia – tarefa seria formar melhor o professor. Como sua base é em geral ruim, não é uma empreitada fácil. Mas, em grande medida, não se está sequer tentando. “Nunca se pensa na aprendizagem do professor”, critica Guiomar. “O professor vai para a capacitação para o aluno dele aprender melhor, não para ele aprender melhor. Ninguém pergunta: mas será que ele sabe?” 

Recentemente, numa aula do curso de Geografia da USP, um aluno que ensina essa matéria numa escola estadual interveio: “Professora, tem uma pergunta que um aluno me fez e eu não soube responder: qual a diferença entre Palestina e Oriente Médio?”

SEM CONTEÚDO 

As chances de melhorar a formação desses professores esbarram num problema: conteúdo está fora de moda. Saber coisas não é algo valorizado no mainstream da educação. Para o construtivismo, a corrente em voga na pedagogia, o importante é “desenvolver habilidades”, “aprender como se aprende”, e não adquirir conteúdos. 

São idéias interessantíssimas, mas parecem deslocadas da realidade. “Se você tem uma escola com professores geniais, tudo experimental, todo mundo é Piaget, os alunos são milionários, você faz o que quer, que não faz diferença”, diz Moura Castro. “Mas, com o professor no mundo real, cheio de limitações e de problemas, vá ver no que vai dar.” Muitos professores de matérias específicas se queixam de que os alunos não conseguem entender suas aulas porque não têm noções básicas de português e de matemática: não conseguem compreender textos, raciocinar com porcentagens, etc. 

A progressão continuada, que aboliu a reprovação dos alunos – uma outra boa idéia, em princípio -, retirou um fator de pressão para que os alunos assimilassem conteúdos. “Não é progressão continuada, é aprovação automática”, lamenta Maria Izabel Noronha, presidente interina do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo (Apeoesp). “Isso posterga a exclusão. Os alunos são empurrados, sem conhecimento.” 

Em resumo, os professores fingem que ensinam e os alunos fingem que aprendem. 

SEM SENTIDO 

Curiosamente, ao mesmo tempo em que se esconde a pobreza de conteúdo sob o discurso construtivista, não se avança na sala de aula para as vinculações entre o que se está ensinando e a vida dos alunos – um dos pontos altos do construtivismo. “O ensino é baseado em definições”, analisa Guiomar. “O contexto é praticamente ignorado. Ninguém trabalha isso, porque o professor não tem tempo, dá muito mais trabalho. Pega o livro didático, manda o aluno ler e resolver os exercícios.” 

Mesmo as crianças e adolescentes pobres são bombardeados de estímulos no seu mundo, ainda que só tenham acesso à televisão – sem falar em internet, videogame, etc. Desconectada da realidade, a escola se reduz a uma obrigação tediosa e sem sentido. Na pesquisa que fez com 1.172 professores (67% deles de escolas públicas e 16% de públicas e particulares), e que resultou no livro O professor refém, Tania Zagury perguntou qual a maior dificuldade deles. “Manter a disciplina em sala” veio em primeiro lugar, com 22%, seguida de “Motivar os alunos”, com 21%. Para a pesquisadora, os dois problemas estão associados: “Aluno desmotivado é bagunceiro.” 

Os professores não têm recursos, nem intelectuais nem materiais, para motivar os alunos. Muitas escolas públicas já têm salas de computadores, por exemplo. Mas freqüentemente ficam fechadas, porque não há professores que saibam ensinar como usá-los, ou técnicos para fazer a manutenção.

Além de se desempenharem mal, muitas vezes os professores simplesmente não comparecem. Segundo Tania, o alto índice de faltas se deve, em grande parte, à desmotivação dos professores, que “sabem que não estão realizando um bom trabalho”, e ao esgotamento causado pela sobrecarga de trabalho que o professor premido pelo salário baixo tem de assumir. “Os da rede pública se valem da estabilidade no emprego.”

Conversando com 26 crianças e adolescentes que estudam em 15 escolas públicas de 7 bairros das zonas norte e leste da cidade de São Paulo (ver abaixo), o Estado constatou como podem ser fúteis os motivos alegados para a ausência dos professores. Há a professora de educação física que faltou três semanas porque bateu o carro e o de inglês que só vai uma vez por mês, porque está fazendo tratamento para gagueira. 

“É um problema não só do professor, mas de gestão”, analisa Guiomar. “Uma escola em que o professor falta porque quebrou o carro, a diretora provavelmente não está conseguindo gerenciar. Caso contrário, mandaria essa professora embora, por processo administrativo. Faria alguma coisa.” Por outro lado, diz a especialista: “Que diretor admite um professor de inglês gago? Alguém entrevistou esse professor, inscreveu-o na delegacia (de ensino).” 

Se quiser combinar universalização e qualidade, o Brasil terá de fazer muito mais. “É necessário muito dinheiro”, diz Guiomar. “Não de salário de professor, mas de recurso, de tempo de permanência da criança na escola, de apoio pedagógico, de material de ensino e de aprendizagem para o professor, porque se ele não souber, não se vai conseguir fazê-lo ensinar.” 

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