Quando se aprende a mesma coisa estando na sala de aula ou no pátio: nada
Faltam poucos minutos para as 7 da noite de quinta-feira. E para a abertura do portão da escola estadual de um bairro da periferia sul de São Paulo. Motociclistas vão e vêm, uns poucos carros encostam esporadicamente. Os manos que estudam na escola – e também uns que não são alunos – ficam de pé ou se sentam na calçada do barzinho que dá exatamente de frente para a entrada da escola, violando a lei municipal que determina distância mínima de 300 metros.
Dois deles fazem ponto: trazem nos bolsos grandes das calças largas as bolsinhas de maconha que vendem ali, para sustentar o próprio vício.
Alguns saem do bar com copos de bombeirinho, a cachaça com groselha que passa por suco pelo portão da escola. Outros já chegam chapados, de álcool ou maconha. Um rapaz do grêmio anunciou que queria fechar o barzinho. “Os manos só levantaram a camiseta”, conta ele, referindo-se ao gesto de mostrar as armas para inibir iniciativas indesejáveis.
Noutra frente, o grêmio foi mais bem sucedido. No primeiro bimestre, constantemente os manos interrompiam as aulas e mandavam todos para casa. Seu método é rudimentar. Basta um cordão e duas pedras, uma em cada ponta. Jogavam nos fios de um poste em que fica o relógio da Eletropaulo. Com o balanço dos fios, a chave caía. A escola, às escuras, suspendia as aulas.
Os rapazes do grêmio reclamaram com a Eletropaulo: ela explicou que a solução seria mover o relógio de lugar e não o fez. Com a polícia: disse que podia atender às ocorrências, não evitá-las. Levaram à diretora os nomes dos alunos envolvidos nas sabotagens. Ela reagiu dizendo que eles – os do grêmio – estavam desrespeitando a autoridade dela. E deixou vazar na escola a informação de que eles tinham “dedurado” os colegas. Ou foi o que eles entenderam e deduziram.
Seja como for, os rapazes do grêmio assimilaram o método da contra-inteligência e espalharam a notícia de que o curso noturno ia fechar por causa dos blecautes. Há dois meses que não cortam a luz. “Eles querem passar de ano sem esforço, e não que o noturno acabe”, explica uma aluna.
Os meninos pararam de fumar maconha no banheiro depois que o cabo da Polícia Militar, lotado há um mês na escola, nos períodos da tarde e da noite, teve uma conversa com eles. E o que o cabo disse? “Lá fora, vocês fazem o que querem. Aqui, vão ter que respeitar”, segundo narram os alunos. Fardado e armado, o cabo anda de cima para baixo. Sua presença, que é parte do plano de segurança do governo, é explicada assim pelos alunos: “A polícia percebeu que tinha que vir todo dia mesmo, então resolveu ficar de vez.”
Do lado de fora, quando os policiais chegam, não desagradam apenas os violentos, mas também os bons alunos. “Eles chamam a gente de penosa, de galinha”, ofendem-se as garotas. “Os meninos, eles chamam de bandidos, e dizem que nunca vamos ser nada que preste na vida”, contam os alunos. Os rapazes vão para a revista no muro; as meninas são mandadas para casa.
A escola tem cinco ou seis alunos em “liberdade assistida” (LA), o jargão para os infratores saídos da Febem. Um juiz ordena que a escola lhes arrume vaga, em geral sem informar seu histórico. Numa escola de Osasco, a coordenadora pedagógica teve uma conversa com o garoto que veio em LA. Assalto a mão armada. Fez um trato com ele: “Não conto para ninguém, e você também não.” Os meninos chegam se vangloriando e se impondo por terem passagem na Febem.
Nessa escola da periferia sul, dois meninos de 13 anos que ficaram juntos na Febem estão agora no turno da tarde. Fumam maconha e dizem que vão ser assaltantes quando crescerem. Um deles já ameaçou um aluno com uma arma de brinquedo no banheiro, dizendo que ia matá-lo se não lhe trouxesse dinheiro. O pai tirou a vítima da escola. O agressor continua lá.
Passa das 7 da noite. O portão se fecha. Uma parte dos alunos volta ao pátio, depois de uma rápida passagem pela sala de aula. É que sua professora do primeiro horário não compareceu. Para os alunos, na maioria dos casos, a diferença entre o pátio e a sala de aula é irrisória, do ponto de vista do aprendizado. À pergunta sobre se dá para aprender alguma coisa, a maioria responde explicando o que significa, para eles, a palavra “aula”.
Nessa e em outras escolas da periferia de São Paulo, os alunos não têm livros, ao contrário do que indicam a política e os números do governo. Durante cinco ou seis aulas consecutivas, os professores passam o conteúdo na lousa. Os alunos copiam nos cadernos. Ao fim desse longo exercício de escritura, o professor esclarece que o que eles copiaram é o que vai cair na prova.
Alguns explicam a matéria. Outros, não. Mas há um truque. É comum os exemplos caírem, sem tirar nem pôr, na prova. Assim, “estudar” significa, em muitos casos, decorar exemplos. É consenso entre os alunos da 3.ª série do curso médio que só há dois professores “bons mesmo”: o de matemática e o de história.
Nos dias de provas, há motivos extras de tensão, além dos convencionais. Alguns professores cobram pela prova: R$ 0,30 por folha original e R$ 0,10 por fotocópia. Na noite de quarta-feira, houve um bate-boca. “Agora eu tenho que pagar para fazer prova?”, questionou um aluno, rasgando a folha. “E eu tenho que tirar do bolso para dar prova?”, contestou a professora, referindo-se aos custos de impressão. Quem não paga não faz.
Situações assim se repetem em muitas escolas da periferia de São Paulo. O Estado optou por não revelar o nome das escolas e das pessoas envolvidas por vários motivos. Em primeiro lugar, porque a individualização de um caso que é recorrente e a estigmatização de uma escola mais atrapalham que ajudam. Além disso, a revelação de mais detalhes exporia os alunos a múltiplos riscos: não só dos violentos, como também das autoridades da própria escola.