Economista Hernando de Soto revela por que o capitalismo fracassa nos países subdesenvolvidos
No meio-dia frio de sexta-feira no centro de São Paulo, o comércio dos camelôs fervilha na Ladeira General Carneiro, onde fica o prédio da Associação Comercial. Lá em cima, no nono andar, o economista peruano Hernando de Soto expõe seu projeto para esses camelôs e para os demais pobres dos países subdesenvolvidos: conceder-lhes escrituras de suas propriedades e convertê-las em garantia para a obtenção de crédito.
A tese, defendida no livro O Mistério do Capital – por que o capitalismo dá certo nos países desenvolvidos e fracassa no resto do mundo, que De Soto veio lançar no Brasil, é relativamente simples: para progredir no mundo capitalista, é preciso acesso ao capital, na forma de crédito. Ao bloquear esse acesso para os pobres, os países os condenam a permanecer na pobreza.
Entretanto, os pobres dispõem de bens que poderiam respaldar seu ingresso num mundo do crédito. São os barracos e casas em que vivem.
O problema é que, nos países subdesenvolvidos, ou não são concedidos títulos de propriedade sobre esses bens ou, quando são, eles não servem para hipotecas que façam girar o dinheiro necessário para empreendimentos que por sua vez farão a passagem da informalidade para a economia formal e para a ascensão social. “O capitalismo é essencialmente a propriedade”, filosofa De Soto. “Ela é o seu arcabouço legal.”
Seria difícil contestar essa afirmação, mas de onde viria a liquidez necessária para a oferta de créditos, em países subjugados pela escassez de poupança interna e pelos juros altos e prazos curtos que caracterizam a instabilidade jurídica e monetária? De Soto responde com outra pergunta:
“Como os bancos centrais dos países desenvolvidos emitem (moeda)?” A resposta: “Eles medem o volume e a velocidade das transações de títulos de propriedade e definem a liquidez necessária para sustentar esse movimento”.
O economista também lança mão de um argumento histórico: “O sistema de crédito surgiu na Holanda do século 17, quando os títulos das propriedades passaram a servir como garantia”. Mas De Soto não coloca apenas teoria sobre a mesa. Suas constatações baseiam-se em estudos de campo, feitos a convite de governos e associações empresariais de países tão diversos quanto a Indonésia e o Peru, o Egito e o México, as Filipinas, o Haiti e a Rússia.
Sua equipe, reunida na organização não-governamental Instituto da Liberdade e Democracia (ILD), com sede em Lima, eleita pela revista inglesa The Economist o segundo mais importante centro de estudos para formulação de políticas do mundo, executou nesses países o mapeamento da economia informal e chegou à conclusão de que “os pobres não são tão pobres assim”.
A poupança dos pobres é feita na forma de casas, materiais de construção e automóveis, e não se traduz em capital porque o sistema financeiro desses países não a reconhece como tal – ao contrário do que ocorre nos países ricos. “O povo está construindo mais do que precisa, poupando em habitação e até em material de construção”, constata De Soto. “Há algo que o faz confiar mais em coisas físicas do que em líquidas.”
A confiança no que é “líquido”, como a moeda, a poupança, ações, créditos, contratos e papéis é o motor do crescimento. “Com um título de propriedade, um americano pode fazer cem operações financeiras”, salienta De Soto.
O trabalho de campo resultou em cálculos surpreendentes. No Peru, os imóveis urbanos e rurais não escriturados somam US$ 74 bilhões – 11 vezes o valor total das empresas e instalações estatais privatizáveis. Nas Filipinas, o chamado “capital morto” acumula US$ 133 bilhões – sete vezes o total dos depósitos nos bancos comerciais do país; no Egito, US$ 240 bilhões – ou 30 vezes o valor de todas as ações comercializadas na Bolsa do Cairo; no México, US$ 315 bilhões – sete vezes o valor da estatal Pemex e de suas reservas de petróleo.
Para fazer esses levantamentos, o ILD recruta cerca de 40 pessoas nos países estudados – entre técnicos de ministérios e secretarias, policiais, economistas e advogados, enfim, todas as categorias que, por dever de ofício, têm capacidade de distinguir o legal daquilo que De Soto chama de “extralegal”.
Pela experiência de De Soto, se a economia informal do Brasil, por exemplo, é estimada em metade do Produto Interno Bruto, então ela deve beirar os 70%:
“Não é um quadro em preto e branco, mas com muitas áreas cinzas”. Plenamente discernível, porém, depois de extenso trabalho de campo. Afinal, as propriedades não escrituradas só não são reconhecidas pelo Estado. No mundo real, elas estão suficientemente bem delineadas para serem vendidas e alugadas.
Há nove anos, a convite do governo, De Soto foi mapear a economia informal da Indonésia, que ocupava 90% da população. Enquanto caminhava pelos campos de arroz de Bali, reparou que um novo cachorro latia quando ele entrava numa propriedade diferente. De volta a Jacarta, recomendou ao gabinete que, para determinar o que pertencia a quem, começasse “ouvindo o latido dos cães”. Um ministro interpretou a mensagem: “Ah, a lei do povo…”
Acontece que muitas das propriedades não são ilegais por acaso, mas por estarem em áreas que oferecem riscos para os moradores, para o meio ambiente, para o abastecimento de água, etc. Qual a conveniência de legalizar essas ocupações, garantindo sua perpetuação e estimulando sua expansão? Pragmático, De Soto responde com a descrição de uma invasão:
primeiro, chega a família, que acampa na área. Depois, traz o material de construção e ergue a casa. Uma vez configurado o assentamento, chega o governo, em busca dos votos dos moradores, e traz eletricidade, água e telefone. Para instalar a infra-estrutura, é preciso ordenar a favela, que acaba urbanizada. Só depois de tudo isso, é concedida a escritura. Nessa ordem inversa, o processo fica três vezes mais caro do que se começasse pelo título de propriedade, calcula.
Resta saber se aqueles que desfrutam dos privilégios da informalidade – como o de não pagar tributos e o de não lidar com trâmites burocráticos – teriam interesse em entregar-se às garras do Estado. De Soto apresenta outro número. No começo do governo de Alberto Fujimori, do qual o economista foi assessor especial entre 1990 e 1992, o programa atraiu 290 mil empresas para a legalidade e, segundo ele, foi o responsável pelo crescimento de 13% nos anos de 1993 e 1994 no Peru.
Na zona rural, aplicando os mesmos princípios da concessão de títulos de propriedade e acesso ao crédito, o ex-assessor da presidência diz ter obtido a substituição maciça de plantações de coca por cultivos legais. De 70% da produção mundial de coca, o Peru passou a responder por 25%, afirma o economista, que acabou saindo do governo três meses antes do “autogolpe” (o fechamento do Congresso e a dissolução do Judiciário por Fujimori, em abril de 1992), por causa do assassinato de integrantes de sua equipe, que os camponeses atribuíram a militares e o presidente não quis investigar.
O plano de De Soto inclui um estudo detalhado sobre os custos – como a corrupção de fiscais e policiais, por exemplo – e os benefícios de se manter na informalidade e os de sair dela. Sua estimativa é a de que as propinas consumam 15% da receita dos informais no Peru e na Bolívia, por exemplo.
“Ser legal tem de custar menos do que ser ilegal”, recomenda. Do trabalho de campo até a formulação e introdução de políticas, De Soto oferece um plano completo, com quatro etapas para fazer a ponte do “capital morto para o vivo”.
Numa sala contígua ao restaurante da Associação Comercial, depois da palestra seguida de almoço, dirigentes da categoria manifestaram interesse em executar no Brasil o plano, que no México custou US$ 1 milhão. “É fácil conseguir patrocínio para isso numa entidade como o Banco Mundial”, assegurou o economista.
No meio da tarde, De Soto apressa-se para embarcar para o Rio, onde permanece durante cinco dias, depois de ter ficado apenas dois em São Paulo. A disparidade de interesse entre uma e outra cidade não partiu dele.
Quando soube de sua vinda, o prefeito do Rio, César Maia, telefonou para Lima e organizou uma agenda extensa de visitas e conversas com ele e com todo o seu secretariado. Já a prefeita Marta Suplicy emocionou-se bem menos, enviando apenas seu secretário de Planejamento, Jorge Wilheim.
A conversa com De Soto, cujo livro é, há seis meses, o mais vendido entre os de economia nos Estados Unidos, e também o segundo mais vendido de língua inglesa na Europa, só interessa para quem suspeita de que o subdesenvolvimento não é produto do capitalismo, mas da falta dele. No Peru, o livro é vendido nas bancas de jornais, como um manual prático para melhorar de vida.
As palestras de De Soto sobre a utilidade da propriedade e do crédito reúnem milhares de pessoas em ginásios no interior do país. A poucos metros de onde o economista espera o carro, os camelôs Marcos Pereira, de 20 anos, e seu sócio Antonio Barbosa, de 21, vendem pomadas para reumatismos e impotência sexual. Num cenário que remete às feiras medievais, eles recomendam seus ungüentos prometendo alívios imediatos e segredando proezas de virilidade.
Aceitariam pagar impostos e taxas em troca da segurança da legalidade e do acesso aos créditos? Os camelôs garantem que sim. Se a resposta, crucial para os planos de De Soto e de seus clientes, é sincera ou não, é difícil determinar. Já os predicados de vendedores e empreendedores dos dois parceiros parecem inegáveis. O que aconteceria com o Brasil se liberasse o capital aprisionado na poupança imóvel da classe pobre e o ímpeto empreendedor de seus detentores é algo imponderável.