Em visita ao Brasil, ex-governante italiano sugere que elites ajudem a manter o País sereno
O ex-primeiro-ministro italiano, Massimo D’Alema, veio ao País participar da Urbis, um congresso internacional sobre as cidades, e se chocou com o nervosismo diante da sucessão presidencial. “É muito importante que a classe dirigente do Brasil e os meios de comunicação ajudem o País a se manter sereno”, exortou. “Seria uma prova de maturidade da democracia.”
O presidente do Partido Democrático da Esquerda (PDS), o principal da oposição, diz que se reuniu com os executivos dos maiores grupos italianos no Brasil, e o clima entre eles é de confiança no futuro do País. D’Alema, de 53 anos, filósofo de formação, um dos jovens artífices da conversão, em 1989, do velho PCI no moderno PDS, aposta no amadurecimento do PT e de seu candidato, Luiz Inácio Lula da Silva, com quem se reuniu na quinta-feira.
Hoje de manhã, encontra-se com o do PPS, Ciro Gomes.
Num sinal dos tempos, o líder da esquerda moderada, presidente da Fundação de Cultura Política Italianos-Europeus e que milita pela integração comercial com a América Latina defendeu a abertura dos mercados. D’Alema, que quando era primeiro-ministro da Itália (1998-2000) fundou o movimento Terceira Via, junto com o então presidente dos EUA Bill Clinton e o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, acredita que a globalização acabe favorecendo mais os países pobres do que os ricos. E está certo de que a “direita neoprotecionista” na Europa e nos Estados Unidos já percebeu isso.
Entre um sobressalto e outro da partida entre a Inglaterra e a Argentina, exibida numa tela grande no lobby do Hotel Sheraton Mofarrej, em São Paulo, D’Alema, que torceu para a Argentina empatar – “sempre torço pelos latinos” -, concedeu a seguinte entrevista ao Estado:
Estado – Por que a prioridade dada ao PT nesta visita do senhor?
Massimo D’Alema – O PT é o maior partido da esquerda brasileira, com o qual temos relações há muitos anos, e que apreciamos. É um grande partido moderno, governa grandes cidades. Conheço em particular Tarso Genro, estive em Porto Alegre (no Fórum Social Mundial).
Estado – O candidato do PSDB à Presidência, o senador José Serra (SP), não pertence à esquerda?
D’Alema – São todos de esquerda no Brasil?
Estado – O sr. é um dos fundadores da Terceira Via, da qual não participa o PT, mas o próprio presidente Fernando Henrique Cardoso e o PSDB. Como mapear essas forças políticas?
D’Alema – Com o PSDB nunca tivemos relações. Temos tido ótimas relações com o presidente Fernando Henrique Cardoso, uma pessoa que estimo e pela qual tenho um grande respeito. Mas seu mandato está terminando. O Brasil pode caminhar para uma mudança. Penso que Cardoso teve um papel até positivo no decorrer desses anos. Mas não conseguiu remover as profundas injustiças sociais, e a grande popularidade de Lula é uma prova disso. E também porque a sua (do presidente Fernando Henrique) maioria (no Congresso) esteve muito condicionada às posições conservadoras. Era uma aliança espúria. Ele seguramente é um intelectual progressista, mas se vinculou aos interesses das classes privilegiadas. O PT representa a ruptura com essa coalizão de grupos conservadores. E introduz no cenário político brasileiro a realidade de um grande partido, que não é uma soma de potentados locais. Isso me parece uma novidade moderna. Penso que a alternância política é um grande valor da democracia. Uma democracia parada, fixada nesses grupos, é uma democracia estagnante. No pântano (stagno, em italiano) prospera a corrupção, etc. Vejo com interesse a possibilidade de uma mudança, sem com isso anular o respeito que tenho por Fernando Henrique. Conheço o PT há diversos anos. Acho que é um partido que tem amadurecido muito, inclusive na experiência de governo. Não creio que farão uma política, digamos, irresponsável.
Estado – Eles passaram por um “aggiornamento”?
D’Alema – Sim, há uma renovação, uma classe dirigente que tem experimentado o governo nas cidades. Além disso, parece-me um erro criar esse medo. O medo cria medo. É muito importante que a classe dirigente do Brasil e os meios de comunicação ajudem o País a se manter sereno. É uma prova de maturidade da democracia. Encaramos sem drama a ascensão ao poder do (primeiro-ministro Silvio) Berlusconi (líder de uma coalizão de direita, eleita em maio de 2001) e de (Umberto) Bossi (líder da Liga Norte, de tendência separatista).
E eles são bem diferentes do Lula (risos).
Estado – Todos concordam que é preciso reduzir a desigualdade. A diferença é como obter isso.
D’Alema – Sim, mas o governo tem feito pouco, até porque esteve condicionado a interesses de grupos privilegiados. Antes das eleições, todos dizem que querem que as coisas melhorem. É difícil que alguém diga: ‘Vamos aumentar as diferenças sociais.’ A questão é de credibilidade.
Estado – A América do Sul dá a sensação de caminhar para a esquerda no momento…
D’Alema – É uma situação de grandes dificuldades na América Latina, de agravamento dos problemas sociais. É o continente que mais sofre, ao lado da África, com as desigualdades da globalização.
Estado – Por outro lado, a Europa parece caminhar para a direita…
D’Alema – Isso talvez seja compreensível também. Os países ricos têm medo da imigração, da perda de privilégios, do terrorismo, do Islã. Em particular depois do 11 de setembro (os atentados nos EUA), há o retorno do nacionalismo. Tudo isso ajuda a direita. A esquerda européia deve elaborar um novo modelo capaz de responder aos temores da nossa opinião pública. É um ciclo. A esquerda já governou todos os países europeus. Agora, a direita prevalece. Mas não creio que a direita européia tenha força para um ciclo longo, porque não há um projeto, há expressões de medo. A situação é bem diferente dos anos 80, quando a direita neoliberal – a ex-primeira ministra britânica Margareth Thatcher, o ex-presidente americano Ronald Reagan – tinha um projeto: ajudar a globalização através da desregulamentação. Isso era muito forte naquela época. Agora, a direita é uma soma contraditória de nacionalismo, liberalismo… Esse populismo de direita dá conta de formar um consenso, mas não de governar. Portanto, pode perder (o poder) rapidamente.
Estado – Essa é uma direita que, tanto na Europa como nos EUA, no que se refere ao comércio exterior…
D’Alema – … é protecionista. Agora, a direita representa o medo dos países ricos da concorrência e assume um caráter mais protecionista. E isso demonstra a falta de projeto da direita, o caráter defensivo de sua política.
Estado – O seu partido é contra o protecionismo agrícola?
D’Alema – Sim. Desde o início da negociação entre a União Européia e o Mercosul, a Itália tem estado a favor da liberalização. É sobretudo a França que difere.
Estado – Lula enfrentou dificuldades aqui ao receber o líder camponês José Bové, um defensor do protecionismo na França. Essas nuances complicam as relações entre as esquerdas brasileira e européia?
D’Alema – A França é a França. Não é porque é a esquerda ou a direita. O nacionalismo francês é de todos (risos). Noutros países, não existe esse empecilho. Estou convencido de que é necessário elaborar o acordo entre União Européia e Mercosul. A grande contribuição que (a Europa) pode dar aos países da América Latina é a abertura de nossos mercados e ao mesmo tempo a cooperação econômica. Encontrei-me aqui com executivos de todos os grandes grupos italianos. Senti um clima de confiança no futuro do Brasil, um país com grande potencialidade de desenvolvimento. O setor financeiro é o mais preocupado. Os mercados são muito voláteis. Não entendo as razões deste nervosismo dos mercados. Não creio que tenha um fundamento real.
Estado – Como vender na Europa a idéia da liberalização do comércio, para a classe média e os trabalhadores?
D’Alema – É uma batalha. É claro que existem setores em que somos menos competitivos. Os EUA, mesmos, fizeram uma tal lista de produtos sensíveis…
Creio que o neoliberalismo esteja se ferindo com suas próprias armas. No fim, a abertura dos mercados será a favor dos países mais pobres, e não contra. Naturalmente tem de ser acompanhada da promoção de sistemas produtivos locais.
Estado – Nesse triângulo formado por América Latina, EUA e União Européia, o perfil político do presidente George W. Bush prejudica ou ajuda a aproximação entre UE e América Latina?
D’Alema – Creio que a política neoprotecionista dos Estados Unidos deveria ajudar na aproximação. Mas isso depende da coragem da Europa. A política da União Européia tem três grandes diretrizes: uma é o Leste. Estamos num processo de expansão da União e de cooperação com a Rússia, que é muito importante para a segurança na Europa e para a democracia. As outras são o Mediterrâneo e a América Latina. Neste momento, na Europa, a situação é incerta, não há uma classe dirigente que tenha a coragem de fazer avançar nosso relacionamento com a América Latina.