Fonte Boa (AM) – Os dez barracos de madeira da comunidade de Mapurilândia vão diminuindo de tamanho lentamente, à medida que as quatro canoas atravessam o Paraná do Maiana, um braço de 16 quilômetros que liga o Rio Solimões a si mesmo. Levando redes de dormir, malhadeiras (redes de pesca), arpões, farinha, café e lanternas, os quatro pescadores entram no Cano do Jenipapo, o pequeno rio que conduz ao Valentim, um dos cinco lagos em que a comunidade faz o manejo do pirarucu.
Seguindo a caprichosa hidrografia da floresta, o cano faz uma curva de 30 graus à direita, e revela, depois de meia hora de viagem, o primeiro obstáculo: dois troncos de mungubeiras atravessam o riacho. Eles emergiram, como áreas inteiras de várzea, com a diminuição do nível das águas, no verão amazônico (junho a outubro). Com machados e terçados (facões), os pescadores “toram” o tronco de baixo. Depois de 25 minutos de trabalho extenuante, abre-se uma fenda sob o tronco de cima, e os homens passam de canoa com as cabeças abaixadas.
Mais meia hora de viagem, e agora é a tapagem (capim na superfície da água) que impede a passagem. O mato é cortado a golpes de terçado e empurrado com os remos, numa penosa travessia que consome 17 minutos. Os dois motores rabeta (de 5,5 cavalos) que impulsionam as canoas (uma delas reboca outras duas) são desligados, e os pescadores entram remando em silêncio no majestoso Lago Valentim-1. Nele, motores são proibidos, para evitar que os peixes fujam para o rio.
Passam-se dez minutos, e os pescadores percebem o primeiro pirarucu. O repórter e o fotógrafo do Estado nada vêem. Os ribeirinhos não só vêem, mas ouvem, sentem, medem e pesam. “É um grande”, concluem. As quatro canoas formam um círculo ao seu redor. Os pescadores se equilibram nas proas, empunhando as hastes de 3 metros dos arpões. O tempo passa.
Maior peixe de água doce do mundo (o maior pescado em Fonte Boa tinha 2,86 metros e 189 quilos), o pirarucu adulto bóia a cada 25 minutos, para inspirar o oxigênio que faz falta na Calha do Solimões, impregnada de metano pela decomposição das plantas no seu fundo.
É na “boiada” que os pescadores localizam e medem o peixe, que, pelas regras do manejo na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) Mamirauá, só pode ser pescado adulto – com mais de 1,50 metro. O pirarucu bate com força a cauda vermelha, já longe dos pescadores, mostrando que fugiu do cerco. “Boiou com raiva”, diz um pescador.
A noite chega, e os focos das lanternas dão brilho aos pares de olhos dos jacarés, enquanto os pescadores procuram a sua “benfeitoria”, o local onde acamparam para a pesca do ano passado. As redes são amarradas às árvores. A fogueira assa pacu, piranha e sulamba, arpoados no lago por um quinto pescador, que chegou ao entardecer. Os peixes são servidos nos remos das canoas, com farinha.
Na manhã seguinte, os pescadores descobrem outro pirarucu no lago, menor que o da véspera. Cercam-no com uma malhadeira de 70 braças (105 metros) de comprimento por 2 metros de altura, em torno de uma tapagem, onde os pirarucus gostam de esconder-se. Sentindo o perigo, ele demora 40 minutos para boiar. Intuindo seus movimentos, os pescadores vão abrindo caminho no meio do capim.
Francisco Batista de Souza, o Bombilho, sobe na restinga (terra firme, alagada no inverno) e de lá finalmente arpoa o peixe, que se escondera na margem. Bombilho puxa a corda de náilon do arpão e acomoda na canoa o peixe de 1,56 metro e 35 quilos. “Pelo tamanho, está aqui há três anos”, estima Edson Carlos Gonçalves de Souza, agente ambiental da comunidade. É o sexto pirarucu pescado por Mapurilândia nessa temporada, que começou em agosto e foi até 30 de outubro.
Em 2006, a comunidade pôde pescar 138 pirarucus, que renderam R$ 20 mil, divididos por igual, a suas dez famílias. Neste ano, a cota, que é de 30% dos pirarucus adultos em cada lago, subiu para 366. Isso quer dizer que quase triplicou, em um ano, o número de pirarucus adultos nos cinco lagos de Mapurilândia.
Em toda a RDS Mamirauá, os 80 contadores treinados e monitorados por 42 agentes ambientais a serviço do IBAMA contaram 44.367 pirarucus adultos em 2004, 103.004 em 2005, 117.555 em 2006 e 72.733 em 2007. A queda, segundo o Instituto de Desenvolvimento Sustentável (IDS) de Fonte Boa, que gere a reserva, deveu-se à decisão de muitas comunidades de “guardar” seus lagos, porque perceberam que havia muitos peixes pequenos. Com isso, não fizeram a contagem neste ano. De 350 lagos em 2006, o manejo se restringe a 260 em 2007.
“Pode ser um problema”, alertou o secretário de Desenvolvimento Sustentável e Meio Ambiente do Amazonas, Virgílio Viana, examinando as planilhas numa reunião com os três engenheiros de pesca do IDS na comunidade Nova Esperança, no Paraná do Tupé, que também liga dois braços do Solimões, no município de Fonte Boa. O secretário sugeriu que os números sejam abertos lago por lago e, onde se constate diminuição de pirarucus, mesmo com o cumprimento das regras, reduza-se a cota de pesca de 30% para 15% dos adultos. Além disso, as comunidades que não estão seguindo as regras devem ser punidas com suspensão, não podendo vender legalmente o peixe por um ou dois anos.
Primeira reserva de desenvolvimento sustentável do Amazonas, instituída em 1999, Mamirauá vê o pirarucu ressurgir nos seus lagos – são 700 ao todo, metade incluída no manejo. Em extinção, sua pesca é proibida no Brasil, com exceção da reserva de Mamirauá e de outra, no município de Silves, também no Amazonas. De Fonte Boa, o pirarucu sai com uma plaquinha e guia de comercialização do IBAMA, em contraste com a imensa quantidade de pirarucus vendidos clandestinamente onde eles ainda existem na Amazônia.
No ano passado, a venda do pirarucu rendeu R$ 5,6 milhões aos 702 pescadores que participaram do manejo. “Eu pesco, graças a Deus”, disse Alzenira Gomes da Silva, de 46 anos, sem marido e com quatro filhos entre 15 e 26 anos de idade. “Criei tudo pescando.”
Os pescadores do Mamirauá têm obtido dos distribuidores preço melhor a cada ano: de R$ 1,50 em 2004, o quilo passou a R$ 2,50 em 2005, R$ 3 em 2006 e R$ 4,50 neste ano. A legalização eliminou propinas e atravessadores. O aumento da escala permitiu a redução da margem de lucro dos distribuidores. Em 2005, o governo amazonense deu uma subvenção de até R$ 1 por quilo do peixe, até atingir o preço de R$ 3,50. No ano passado, isso já não foi necessário.
A prosperidade emite sinais. Com o dinheiro da pesca, a comunidade Santa União comprou, por R$ 70 mil, um barco geleiro regional, que leva dez horas até a sede do município, transportando passageiros, peixes e mercadorias. Com o êxito, mais comunidades aderem ao manejo do pirarucu. Das 153 da reserva, já participam 132.
Mas não é só o pirarucu que está gerando renda em Mamirauá. As comunidades têm conseguido aprovar planos de manejo de madeira também. A Nova Esperança e a Costa da Ilha, por exemplo, que reúnem 47 sócios, obtiveram permissão para cortar 38 árvores no último inverno (novembro a maio). “Tiramos 36 e deixamos 2, para ter certeza de não cortar a mais”, conta o presidente da associação, Ataíde Borges Gonçalves, de 49 anos. A venda rendeu R$ 5.600. “No tempo do acaba-acaba, era triste”, diz Ataíde.
Outras comunidades não conseguiram aprovação de seus planos de manejo de madeira a tempo no inverno passado, por demora burocrática. Uma lei antiga atribuía ao Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá, com sede em Tefé, a tarefa de aprovar os planos. Era demorado. Agora, uma emenda prevê que os manejos serão aprovados pelo IDS, que administra a reserva.
As comunidades têm os seus problemas, como a falta de escolas, e de transporte para onde elas existem. A fiscalização dos 42 agentes ambientais, apoiados por quatro flutuantes e incursões eventuais do IBAMA, ainda é frágil, numa área de 11.240 quilômetros quadrados. No escritório do IDS em Fonte Boa, há um entra-e-sai de líderes comunitários queixando-se de vizinhos e de moradores da cidade que invadem lagos e praias e saem com peixes, tracajás e ovos ilegalmente.
“A gente conversa, mas tem gente que insiste, quer porque quer”, disse Rose Alves Monteiro, da Nova Esperança. “É arriscado. Já foi gente armada de espingarda. Os agentes ambientais só têm as mãos.” Belém Maciel de Souza, líder da comunidade Terra Nova, reivindica: “Precisamos de apoio da polícia para flagrar os criminosos.” Para agravar a situação, os agentes não têm recebido o “rancho” mensal de R$ 200 a que têm direito durante o verão, quando os bichos de casco desovam nas praias. Alguns estão desistindo. “O IDS está sem dinheiro”, justifica José Oster Machado Neto, um dos engenheiros de pesca do instituto. “Estamos esperando entrar pirarucus para arrecadar.”
As coisas começam a engrenar em Mamirauá, mas nem sempre foi assim. “Quando virou estação ecológica, em 1990, foi traumático”, recorda o deputado estadual Wilson Lisboa (PC do B). “O Exército e a Polícia Federal tomaram motosserra, espingarda, arpão e até terçado dos ribeirinhos. Quando o caboclo ouvia falar em Mamirauá, era sinônimo de terrorismo. Agora, já pode trabalhar.”
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