Pão e circo não bastam

A democracia recondiciona o pensamento político e não se presta a velhas manipulações

A derrota, já no primeiro turno, de mais de 80% dos deputados federais candidatos a prefeito no Estado de São Paulo é um dos dados mais interessantes destas eleições municipais. Há quatro anos, 58% dos deputados federais já haviam perdido eleição para prefeito no primeiro turno em todo o País. No modo de fazer política no Brasil, está incrustada uma certeza, a de que prestígio político se traduz automaticamente em ganho eleitoral independentemente da esfera de poder em que se atua e se disputa.

O senador e ex-ministro José Serra não está sozinho em amargar o resultado desse tipo de erro de cálculo. O senador Eduardo Suplicy, igualmente prestigiado por serviços prestados à República também conheceu esse sabor. São apenas os casos mais recentes em São Paulo. A lista se estende por todo o País e todos os partidos. O melhor “nome” do partido é escalado para disputar uma função que não condiz com a sua atual e se queima simultaneamente para as duas.

Os políticos brasileiros ainda planejam suas carreiras ignorando a natureza do cargo ou da representação parlamentar que exercem e da que querem exercer. Daí se sentirem à vontade para disputar eleições de dois em dois anos, se for da conveniência deles e de seus partidos. O resultado das eleições municipais é um “não” sonoro dos eleitores a essa falta de nexo político.

O veículo dessa visão utilitarista da política é, por excelência, o horário eleitoral gratuito. Quem acreditava nas chances do estranho Enéas nas duas eleições presidenciais que disputou, em 1989 e 1994? Cada eleição é vista por muitos políticos como trampolim para um objetivo qualquer que não tem nada a ver com o que está em disputa naquele instante. A noção de que o eleitor não está preocupado com questões de substância, como plataforma administrativa, mas sim pronto para consumir o produto mais bem embalado e o político com imagem mais forte e carismática, tem sido identificada como uma percepção madura e pragmática da política no Brasil.

Muitos políticos, talvez a maioria, subestimam selvagemente a opinião pública. O resultado são discursos vazios, argumentos de autoridade e agressões aos candidatos rivais que não têm a menor pertinência no debate. É uma visão burra a de que o eleitor estaria pronto a abandonar o seu interesse prático, como transporte, segurança, saúde, educado, etc., para se distrair com os golpes de esperteza retórica ou se impressionar com o prestígio de um candidato noutra esfera de poder.

Uma versão política da lei evolucionista se encarrega de limpar o cenário de políticos que vêem e agem por esse prisma. Não que as escolhas no primeiro turno das eleições municipais tenham sido necessariamente acertadas, que os eleitores não vão se decepcionar, ou que os critérios de escolha tenham atingido a perfeição.

O que os resultados mostram é simplesmente que mesmo instrumentos poderosos, como o Plano Real, não servem de alavanca suficiente para uma eleição municipal. Também devem ser vistos com suspeita políticos que migram alegremente de cargos no governo ou esferas de representaçao federais para candidaturas no âmbito municipal. A especificidade técnica de cada função, e com ela a experiência, está sendo valorizada. Além disso, o eleitor não vê com bons olhos obras não-concluídas, cargos e mandatos largados no meio. Continuidade é a palavra-chave, nó percepção de muitos eleitores. Rupturas, só quando necessário, mediante traumas como os escândalos que precederam o impeachment de Fernando Collor.

O que parece ter acontecido com muitos políticos é que eles tiraram as conclusões erradas do processo de democratização do Brasil. Eleições não são simplesmente o novo veículo de velhas práticas, como o paternalismo, o abuso de poder e a perpetuação de oligarquias. A democracia é uma forma que altera o pensamento político em sua substância. Nela se constrói gradualmente uma consciência seletiva e as prioridades da vida se ordenam politicamente. Pão e circo não bastam.

 

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