Dogmas se distanciam da vida real

Igreja Católica convive com a disparidade entre o que ela prega e a prática dos fiéis, mas acolhe os que querem expiar suas culpas.

Dos três em cada quatro brasileiros que se declararam católicos no último censo, uma parte substancial não preenche os requisitos institucionais: freqüentar missa, confessar, comungar, rezar.

Nem os doutrinários: abster-se do sexo antes ou fora do casamento, não se divorciar, não usar preservativo, não fazer laqueadura de trompa. Seja por seu estilo de vida, seja por sua visão de mundo e por suas convicções éticas, não seguem os preceitos da Igreja.

Continuam sendo católicos, não só porque se sentem assim, mas porque a incoerência é uma componente do catolicismo. “Sempre houve um hiato entre o modelo moral que a Igreja oferece e a prática dos fiéis”, analisa a antropóloga Regina Novaes, da UFRJ. “A Igreja fica entre o ideal e o real. Faz essa mediação. Se Cristo tivesse salvado todos, a Igreja não precisaria existir.”

“Sempre a Igreja tem que mostrar o caminho e sempre há dificuldade de procurar coerência entre o que ela professa e o que se vive”, reconhece d. Orani João Tempesta, presidente da Comissão para Cultura, Educação e Comunicação Social da CNBB. “Quanto mais convicção, mais encontro com Cristo.”

D. Orani, arcebispo de Belém, lembra que os papas João XXIII e Paulo VI também foram contra os métodos anticoncepcionais. Para ele, não há necessidade de revisão dos preceitos. “Não é porque parte da Igreja não se importa com o que é pregado que a Igreja deve deixar de pregar. Os preceitos não são gratuitos, mas uma tradução do Evangelho diante das novas circunstâncias.”

Há visões distintas. “Os problemas ligados à reprodução humana, à sexualidade, ao celibato dos padres estão sendo revistos”, diz o sociólogo Luiz Alberto Gómez de Souza, diretor-executivo do Ceris, que está escrevendo um livro intitulado Do Vaticano 2.º a um novo Concílio? São temas que não estão nas Escrituras, acredita Gómez, assessor das comunidades eclesiais de base, que militam sobre questões sociais. Diferentemente do aborto, que se refere diretamente ao direito à vida.

O frei Carlos Josaphat, de 80 anos, professor de teologia que acompanhou o Concílio Vaticano 2.º (1962-65), vai mais longe. Ele lembra que uma comissão criada pelo papa João XXIII aprovou métodos anticoncepcionais, com base na primazia da natureza pessoal do homem sobre sua natureza biológica. Em sua Encíclica Humane Vitae (1968), no entanto, Paulo VI interditou a mudança. “Faltou pouquinho”, diz frei Josaphat, que atribui o veto ao medo de que a autoridade da Igreja ficasse ameaçada.

CULPA

As religiões protestantes tradicionais e mesmo as pentecostais estão muito menos sujeitas a esses dilemas morais porque não se metem nessas esferas. As orientações são mais gerais e os detalhes sobre como proceder ficam a cargo da “consciência” de cada fiel.

Os especialistas classificam o catolicismo no Brasil como religião de família, em contraste com o protestantismo, uma religião de escolha, de conversão. O veículo principal da Igreja católica são os rituais, gestos, símbolos; o da protestante é a palavra, o Evangelho. “As religiões de conversão têm de oferecer algo mais arrebatador para valer a pena se converter, têm de ser mais coerentes para levar o fiel a renascer nelas, a fazer uma ruptura”, explica Regina Noaves. “No catolicismo, ele não precisa sentir que amanhã nascerá diferente.”

Rubens César Fernandes, secretário-executivo do Instituto Superior de Estudos da Religião (Iser), no Rio, vê a Igreja em círculos: do mais concêntrico, ocupado pelo clero e pelos mais devotos, expandindo para uma adesão genérica sem dogmas. “Quando deixar de ser assim, ela deixará de ser católica.”

Católico quer dizer universal. É a igreja includente, do “acolhimento”, sugere Regina, o lugar aonde quem viola o próprio código de conduta pode levar sua culpa. “Uma prostituta pode ser católica devota, e isso é importante”, assinala Rubens César. “Não que a Igreja seja conivente com a prostituição. Mas, em momentos de crise, há espaços para a relação com o sagrado, que importa para as pessoas.”

CONVERSÃO

Mas para a incoerência também há um limite, concordam os especialistas. Além disso, com o avanço do protestantismo tradicional e do pentecostalismo, eles discutem se a Igreja católica não terá de assimilar atributos das religiões de conversão, investindo no convencimento pela palavra. “Com o pluralismo religioso que acompanha a globalização, com o aumento da oferta de religiões, a escolha poderia melhorar o catolicismo”, especula Regina.

“Não consigo pensar que o catolicismo possa converter”, descarta o sociólogo Antônio Flávio Pierucci, da USP. “Ele chegou como religião do conquistador, plasmando a identidade religiosa da nação. Ele se dirige aos povos e é muito ruim quando tem de competir com religiões que pensam no indivíduo.”

De sua parte, a identidade dos brasileiros já sofre transformações. “O protestantismo vem dos Estados Unidos e se adapta apenas relativamente”, observa Pierucci. Para o sociólogo, o signo mais eloqüente dessa linguagem diferente é a música gospel (God spell, palavra de Deus). “Isso não tem nada de brasileiro.”

 

Deixe o seu comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

*