João Paulo II representou para o mundo bem mais do que o líder máximo de uma igreja com 1,1 bilhão de seguidores.
Já era noite alta em Roma quando o monsenhor Leonardo Sandri surgiu na frente da multidão da Praça São Pedro. Cem mil pessoas esperavam. “Irmãos e irmãs”, começou o subsecretário de Estado do Vaticano, ladeado por cardeais no átrio do Palácio Apostólico.
“Nosso Santo Padre João Paulo voltou para a casa do Pai.” O anúncio foi acolhido com um longo aplauso. Os sinos da Basílica de São Pedro badalaram, seguidos pelos das outras igrejas de Roma. Depois, o silêncio voltou a reinar na praça. E a multidão chorou.
O papa morreu olhando para a janela de seu apartamento, através da qual durante incontáveis vezes abençoara os fiéis, ao longo dos últimos 26 anos. Apesar do coração fraco e da respiração difícil, João Paulo viveu momentos intermitentes de consciência no seu último dia. “O Santo Padre morreu esta noite às 21h37 (16h37 em Brasília) em seu apartamento particular”, informou a nota oficial, distribuída para os jornalistas via correio eletrônico pelo porta-voz do Vaticano, Joaquín
Navarro Valls. “Todos os procedimentos previstos na Constituição Apostólica Universi Dominici Gregis, promulgada por João Paulo II em 22 de fevereiro de 1996, já foram colocados em prática”, assegurou o comunicado, referindo-se à seqüência de providências a ser observada nas próximas duas ou três semanas, até a escolha de seu sucessor
.
O PESCADOR
Seguindo o ritual da Santa Sé, a morte do papa foi atestada pelo camerlengo Eduardo Martinez Somalo, a maior autoridade administrativa da Igreja, na ausência do papa. Em seguida, o camareiro-chefe retirou o “Anel do Pescador” do dedo do pontífice. O anel deve ser quebrado, juntamente com o selo do papa, para que não sejam usados por mais ninguém. O cardeal Angelo Sodano, secretário de Estado e número 2 na hierarquia do Vaticano, celebra hoje uma missa na Praça São Pedro a partir das 10h locais (5h em Brasília).
O corpo do papa só será exposto na Basílica de São Pedro amanhã à tarde, informou o porta-voz Navarro Valls. Dois milhões de fiéis são esperados nos funerais. A data do enterro deve ser definida hoje. Pela regra, ele deve ocorrer quatro a seis dias depois da morte, e o corpo deve ser exposto por três. Também na segunda-feira se realizará a primeira reunião para preparar o próximo conclave, no qual 117 cardeais elegerão o sucessor de João Paulo II.
A morte do papa poucas horas antes da passagem para o domingo, o dia do descanso semanal católico, revestiu-se de simbolismo. “Avizinha-se a aurora do domingo, dia do Senhor”, observou o cardeal Sodano. “Alegra-nos pensar no Santo Padre João Paulo II na glória de Deus acolhido na casa do Pai, ressurgido e vivo.”
O PROTAGONISTA
João Paulo II representou para o mundo bem mais do que o líder máximo de uma igreja com 1,1 bilhão de seguidores. Quando assumiu o pontificado, em 1978, a Igreja Católica experimentava um momento de lassidão doutrinária, instaurado pelo Concílio do Vaticano 2.º (1962-65). O papa tomou a peito a tarefa de ordenar e unificar a Igreja sob um dogma claro e inquestionável. E o fez com visível gosto, para admiração de uns e perplexidade de outros, exibindo atributos que normalmente não andam juntos: a firmeza para mandar, temperada por uma cativante humildade.
Goste-se ou não, João Paulo não deixou espaços de tergiversação para temas como o planejamento familiar, o aborto, o casamento de homossexuais, o divórcio, a eutanásia e as pesquisas com células-tronco. Conservador na esfera moral, Karol Wojtyla, que como polonês viveu na pele o jugo
comunista, revelou-se um liberal na política, tendo tido papel importante na queda do Muro de Berlim, em 1989. Num certo sentido, João Paulo II daria uma resposta, décadas depois, à célebre pergunta do ditador soviético Josef Stalin, quando um assessor o alertou sobre os conflitos com a Igreja Católica: “O papa? Quantas divisões ele tem?”
“A Igreja Católica perdeu seu pastor”, disse ontem o presidente George W. Bush. “O mundo perdeu um campeão da liberdade humana.” Não que o papa tenha sido dócil em relação aos Estados Unidos. João Paulo II se opôs abertamente às duas invasões americanas do Iraque, em 1991, pelo pai do atual presidente, e em 2003, pelo atual. “Não à guerra!”, proclamou o papa a diplomatas reunidos no Vaticano nas vésperas da invasão. “A guerra não é sempre inevitável. Mas é sempre uma derrota para a humanidade.”
O PEREGRINO
Um globe-trotter, João Paulo foi o papa que mais viajou na história, percorrendo 1.247.613 quilômetros, com 104 viagens para 132 países. Suas estadas fora do Vaticano somaram dois anos e três meses. Suas peregrinações, marcadas pelo gesto de beijar a terra ao descer do avião, o trouxeram três vezes ao Brasil, onde regozijou os fiéis com sua fluência em português, uma
das mais de dez línguas que dominava.
“O papa não pode ficar prisioneiro do Vaticano”, disse ele a repórteres, no início do pontificado. “Quero ir a todas as pessoas, dos nômades das estepes aos monges e freiras em seus conventos. Quero atravessar a soleira de cada lar.”
Tornado papa aos 58 anos, com uma compleição física avantajada, o papa esbanjou vitalidade em boa parte de seu pontificado, mesmo depois do atentado à bala de 1981, que o atingiu no estômago e numa mão – nove meses depois ele retomaria as viagens. Nem mesmo o mal de Parkinson, que o
acometeu em 1992, foi capaz de confinar João Paulo, embora sua saúde se tenha deteriorado paulatinamente a partir daí.
Habituado à sua vitalidade, o mundo se chocou com os sinais de sua debilitação, culminando nas complicações das últimas semanas. A agonia do papa começou em janeiro, quando foi internado na Policlínica Gemelli com inflamação aguda na laringe e na traquéia. Sua voz, desde então, passou a
ser quase inaudível para os fiéis que aguardavam por sua bênção.
No dia 24 de fevereiro, foi internado às pressas por problemas respiratórios. Ele precisou ser submetido a uma traqueostomia, cirurgia em que se coloca um tubo para facilitar a respiração na altura da traquéia. Depois que recebeu alta, em 13 de março, passou a ter dificuldade para se
alimentar, como conseqüência da cirurgia. Uma sonda nasogástrica foi então necessária para que João Paulo II recebesse os alimentos diretamente no estômago.
Sua aparição no Domingo de Páscoa tornou o sofrimento evidente. O papa que encantou o mundo com seu dom poliglota não conseguiu sequer balbuciar uma saudação para a multidão na Praça de São Pedro. No lugar das palavras, uma eloqüente feição de dor. Numa nota escrita, o papa exprimiu sua perplexidade: “O que fizeram comigo?”