Cantor paquistanês é herdeiro da tradição dos qawwalis, que promoviam o contato com o Profeta e com Alá.
LONDRES — No século 12, quando o islamismo se expandia pela Ásia, um grupo de sufistas, uma seita mística muçulmana, decidiu imigrar com seu líder espiritual do Afeganistão para a Índia, com a missão de levar a palavra do Profeta.
O mestre morreu e seus seguidores entoaram cânticos místicos sobre sua tumba para proteger seu corpo. Começava assim na antiga Índia a tradição dos qawwalis, os músicos que com sua arte aproximam os homens de Deus.
A história seria exclusivamente oriental, se não fosse por Peter Gabriel, que descobriu o cantor paquistanês Nusrat Fateh Ali Khan e passou a produzir seus discos e shows no Ocidente. Nusrat, que se apresenta amanhã no Auditório Cláudio Santoro, em Campos do Jordão, e segunda-feira no Memorial da América Latina, é descendente direto desta linhagem. Depois de cantar com os Gipsy Kings, ele planeja agora gravar com Sinead O’Connor.
Em sua passagem por Londres, quando lotou o Royal Albert Hall, o cantor adiantou ao Caderno 2 que apresentará em São Paulo um repertório clássico —no sentido qawwali do termo —, baseado em seu disco mais recente, O Último Profeta, lançado este ano. “Estou ansioso por tocar no Brasil”, disse Nusrat. “Disseram-me que os brasileiros têm bom ouvido.”
E os ouvidos brasileiros devem ficar tocados com a primeira música do Último Profeta, Makii Madni. Ela começa com uma gaita familiar, que estranhamente lembra Luiz Gonzaga, em meio a todo o resto exótico. Nusrat canta em urdu, árabe, hindi e persa medieval. Não é estranho um músico místico paquistanês fazer sucesso nos Estados Unidos e no Japão? É Nusrat que responde: “As notas musicais são universais, a música não tem barreiras.” Só soa como lugar comum para quem não ouviu Nusrat e os 11 músicos que ele leva ao Brasil.
Na melhor tradição qawwali, ao cantar, Nusrat transpõe as barreiras não só culturais, mas da distinção entre o humano e o divino. Destinada a celebrar a comunhão com o Profeta e Deus, a música leva o cantor e o público ao êxtase, seja ele místico ou puramente estético. Nusrat, um homem de 46 anos consumido pela diabete e outras complicações de saúde e oprimido pelo peso do próprio corpo (150 kg), se eleva acima de tudo ao cantar. É a versão moderna do missionário sufista, que usava os cânticos para converter os infiéis.