Jornalista da ‘NewYorker’ escreve sobre um Iraque devastado pela tirania e pelas bombas
Em The Sewing Circles of Herat (Os Círculos de Costura de Herat), um extraordinário relato de suas reportagens no Afeganistão, a jornalista inglesa Christina Lamb observa que, de longe, os conflitos parecem mais perigosos do que de perto. É o que todo repórter repete para si mesmo e para sua família, ao se despedir com uma passagem na mão. Claro que, infelizmente, nem sempre os fatos comprovam a tese.
Jon Lee Anderson, da revista The New Yorker, teve de pagar para ver no Iraque. Diante da tenebrosa expectativa criada pelo Pentágono, antes do ataque, de um bombardeio avassalador, e diante dos temores de que Saddam Hussein convertesse os jornalistas – sobretudo americanos e ingleses – em “escudos humanos”, a chefia de redação da New Yorker decidiu mandar Anderson, um veterano em coberturas de guerra, voltar para casa na véspera do início previsto dos ataques.
Anderson, que se havia comprometido a obedecer, se recebesse essa ordem, preparou-se para partir, juntamente com outros quatro jornalistas, incluindo John Burns, de The New York Times, e Melinda Liu, da Newsweek, que haviam recebido instruções semelhantes. Arrumaram as malas, com a estranha mistura de contrariedade e alívio que acomete repórteres em momentos como esse.
Entretanto, a situação do Iraque era mais complexa ainda. Quando se preparavam para partir, receberam a informação de que jornalistas que tentavam cruzar a fronteira com a Jordânia estavam sendo detidos por supostas “violações a leis monetárias”, e mandados de volta para Bagdá. Voltar não era mais uma opção segura, comunicaram os jornalistas a suas redações. E ficaram para cobrir a guerra.
Esse é apenas um dos muitos dilemas, sobressaltos e surpresas vividos por Anderson ao longo dos 21 meses que passou baseado em Bagdá, muito antes, durante e depois da guerra. E que ele relata nas 376 páginas de seu novo livro, A Queda de Bagdá, que será lançado no dia 6 no Brasil pela Editora Objetiva (R$ 49,90).
Anderson escreve na maior parte do tempo numa linguagem prosaica, como num diário, sem grandes preocupações em elaborar de forma literária aquilo que está vivenciando, como se estivesse pensando alto. Isso serve para aproximar o leitor, que se sente como um companheiro de viagem. A tradução de Alda Porto reproduz com êxito esse espírito, não roubando a graça das expressões,
por exemplo, quando o autor descreve o “guia” do governo que vigiava seus passos: “Em público, comportava-se sempre como um pé-de-boi baathista de rabo abanando”, diz ele, referindo-se ao Partido Baath, de Saddam.
Mas, aqui e ali, reaparece o texto sofisticado, inteligente e sutil dos escritores da New Yorker, como nessa saborosa descrição psicológica do ex-ditador iraquiano, durante um encontro dele, transmitido pela TV, com um grupo de poetas encarregados de compor um novo hino nacional: “A presença de
Saddam era hipnótica e apavorante. Ele tinha olhos cor de avelã, frios e penetrantes, e usava-os com grande efeito, escondendo-os às vezes por longos momentos atrás das pesadas pálpebras, e depois reabrindo-os de repente para examinar com expressão predatória o rosto de um e de outro poeta, como se tentasse ler suas almas.”
O livro está recheado de personagens improváveis, desses que só se reúnem atraídos por situações-limite como a de uma guerra. É o caso de um irlandês radicado em Nova York chamado Patrick Dillon, de 50 e tantos anos. Dillon estava em Bagdá por conta própria. Era contra a guerra, mas não era um escudo humano. Não era jornalista, mas pretendia rodar um documentário com sua câmera digital. Quando jovem, servira como soldado no Vietnã, e desde então ficara obcecado por guerra. Percorrera a Irlanda do Norte, Somália e Kosovo. Isso mesmo: um pacifista viciado em guerra.
Anderson, que viveu três anos em Cuba para escrever Che – Uma Biografia (publicado no Brasil pela Objetiva), e é autor também de The Lion’s Grave: Dispatches from Afghanistan (O Túmulo do Leão: Despachos do Afeganistão), expõe a difícil e compensadora arte de conquistar a confiança de uma fonte valiosa. Esse esforço levava ao paroxismo no Iraque de Saddam, onde um tímido sinal de insatisfação perante o regime podia custar a vida, levando os cidadãos a viver uma vida dupla, entre o que realmente sentiam o que eram obrigados a externar.
Por recomendação do então ministro das Relações Exteriores do Iraque, Naji Sabri al-Hadithi, Anderson conheceu Ala Bashir, médico e suposto amigo íntimo de Saddam. Depois de vários encontros inócuos, nos quais Bashir defendia Saddam mecanicamente, o médico levou Anderson até uma sala vazia numa galeria de arte. “Você não deveria esperar a verdade quando conversa
com iraquianos”, disse ele. “Eles não podem falar a verdade. Há muito medo entre os iraquianos, e por muito bons motivos.” A partir daí, conta Anderson, a relação entre os dois ganhou outra dimensão. Quando estavam com outras pessoas, conversavam superficialmente. Quando estavam a sós, diziam o que realmente pensavam.
Anderson revela os bastidores da relação entre um grande veículo de imprensa americano e o governo, no calor de uma guerra. Durante os bombardeios, ele recebeu um e-mail de uma editora da New Yorker, que lhe repassava informações urgentes fornecidas em off pelo Pentágono a executivos da grande imprensa americana, com detalhes sobre horários e locais em Bagdá que os
jornalistas americanos deviam evitar. A mensagem equivalia a um plano de ataque.
Do lado de cá da guerra, a dor e a revolta diante da morte de gente inocente são sintetizadas em reações como a de um médico do Hospital Al-Kindi, depois de três crianças morrerem em suas mãos – de um total de cem feridos levados ao hospital no dia. “Essa criança poderia ser meu filho”, disse o médico, que abrigara sua família no hospital. “Vocês acham que isso se justifica?” A guerra é feita de perguntas sem resposta.