Caminhões fazem de SP terra sem lei

O catarinense Reginaldo de Oliveira, 35 anos, casado, pai de quatro filhos, morador de Criciúma, não tem nada de vilão: pacato, amistoso e cortês, ele vem trajando uma camisa pólo azul com emblema da firma, bermuda cáqui e sandálias havaianas pretas.

Mas Reginaldo se prepara para cometer uma terrível vilania: entrar em São Paulo com sua carreta de 41.600 quilos sobre cinco eixos.

Reginaldo deixa o posto do quilômetro 31 da Rodovia Régis Bittencourt às 7h07, rumo à Marginal Tietê, via Rodoanel e Rodovia Castelo Branco, para uma jornada de 12 horas pelas ruas e avenidas de São Paulo. Daqui, seguirá para Divinópolis (MG), a 450 quilômetros de São Paulo, onde carregará 27 mil quilos de ferro-gusa, que levará para uma fábrica de autopeças em Nova Veneza (SC), passando mais uma vez pela Marginal Tietê. Nada de especial para Reginaldo: ele cumpre essa rotina uma vez por semana, há dois anos.

Negociando sua passagem por ruas residenciais, estacionando sobre calçadas e faixas de pedestres, bloqueando pistas e pontos de ônibus, Reginaldo fará nove entregas, algumas delas de duas caixas de 50 por 50 cm, que até um motoboy poderia levar. Como todos os outros caminhoneiros de fora ouvidos pelo Estado, Reginaldo nunca foi multado – até porque a multa não chega a Nova Veneza (SC), onde seu caminhão foi emplacado, assim como às cidades de origem da maioria dos caminhões. Rodízio e normas de trânsito são aborrecimentos para quem mora em São Paulo, não para quem passa por ela. 

Todos os dias, cerca de 90 mil caminhoneiros chegam a São Paulo, enquanto outros 245 mil circulam com placas da cidade, segundo dados da Dersa e da CET, respectivamente. No meio do caos de São Paulo, não há sequer um debate público sobre o assunto. “Aqui, cada um faz o que bem entende”, observa Cláudio Barbieri, do Departamento de Engenharia de Transporte da Escola Politécnica da USP. “A sociedade é tão permissiva, aceita tanta coisa, que isso é considerado falta menor.”

Com a total liberalidade em São Paulo, parece economicamente interessante para as transportadoras deixar que as carretas entreguem de porta em porta o que trouxeram de longe. É talvez a única cidade de seu porte que se comporta como um vilarejo, cuja avenida principal é a estrada e cujas ruas se prestam docilmente à livre passagem dos caminhões. 

Embora representem apenas 4,5% da frota de veículos de São Paulo, os caminhões são responsáveis por 35% dos congestionamentos da cidade, segundo estudos do próprio Sindicato das Empresas de Transportes de Carga de São Paulo (Setcesp). Além de serem grandes e lentos, eles são protagonistas freqüentes de acidentes que levam o trânsito ao colapso.

Muitos caminhões entram em São Paulo não porque têm algo a entregar aqui ou porque não há outro caminho para seu destino, mas porque é mais seguro. Ou pelo menos é o que pensam algumas seguradoras, que impõem o trânsito pela Marginal Tietê de caminhões que estão só de passagem e poderiam acessar suas estradas pelo Rodoanel. Para elas, o tráfego devagar quase parando da Marginal parece mais seguro que o Rodoanel, com suas porosas estradas vicinais – múltiplos pontos de fuga para ladrões de carga.

Valdir Ew vem do pólo petroquímico gaúcho de Triunfo, levando carga de polietileno, cobiçada pelos ladrões, para Belo Horizonte. Por ele, iria pelo Rodoanel, pegaria a Rodovia Anhangüera, entraria por Campo Limpo Paulista e Jarinu e, pela Rodovia Dom Pedro, sairia no quilômetro 67 da Fernão Dias. Por essa rota, levaria 2h15, diz ele. Mas, segundo Valdir, a seguradora Apisul exige que ele entre pela Marginal do Tietê – prolongando o percurso em várias horas. “A gente não pode ir por onde quer, por onde é viável, tem menos risco e menos consumo”, queixa-se o veterano de 62 anos. (Procurada pelo Estado, a Apisul não se pronunciou.)

“Se pudesse escolher, andava só na estrada”, assegura Reginaldo, enquanto tenta entrar na Rua Maria Cândida (Vila Guilherme), disputando com os velozes carros pequenos que tratam de se afunilar pela última brecha deixada pelo caminhão antes de fechar totalmente a via. “Mas precisa, não adianta se estressar”, completa ele, com sua calma imperturbável. “Motorista não se preocupa muito com trânsito. Estressante mesmo é a buraqueira.”

É uma queixa comum. Os buracos remexem a carga e a danificam, provocando devoluções dos clientes; cortam pneus de R$ 2 mil, arriam amortecedores; no caso das valetas em ruas de terra, chegam a trincar parachoques. 

Hábitat natural dos caminhões, as marginais são os alvos das maiores críticas. “A Tietê não tem condição de andar. É só buraco”, acusa Adriano Zanatta, gaúcho de Montenegro, cuja carga de bobinas de tecelagem “entortou” na marginal. Os caminhoneiros de fora encaram as marginais como rodovia, ao contrário dos motoristas de São Paulo, que as usam como avenidas. “Se caminhão só pode andar nas pistas da direita, o certo seria só deixar os carros andarem nas pistas da esquerda”, reivindica Zanatta, com a aprovação geral dos colegas. “Tem muito auto andando nas faixas dos caminhões.”

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