Analistas dizem que polícia precisa incorporar ferramentas de planejamento
A ofensiva do Primeiro Comando da Capital deixou duas sensações amargas. A primeira é a de que não há nada que impeça que ela volte a acontecer, quando os bandidos julgarem conveniente. A segunda, que de certa forma explica a primeira, é a de que ela não foi algo imprevisto. As autoridades a anteciparam. Mas não souberam o que fazer com a informação.
“A situação pode se repetir até na semana que vem, porque as condições para tanto permanecem”, diz o coronel José Vicente, da reserva da Polícia Militar, especialista em segurança. “Como pode ocorrer em qualquer Estado. E vai acontecer, agora que descobriram o poder e a facilidade do terrorismo.”
Agora que estão claras a vitória do PCC – expressa na visita de cortesia do sábado – e a derrota de São Paulo – manifesta no toque de recolher auto-imposto na segunda-feira -, a pergunta que fica é: temos de aceitar a fatalidade, ou há algo que se possa fazer a respeito?
No início desta década, o debate sobre segurança pública se concentrava na falta de informação. Não adiantava, diziam os especialistas, “botar a polícia na rua”, como clama o senso comum, se os policiais não sabiam o que estava se passando. Nos últimos anos, tanto as polícias do Estado de São Paulo quanto a federal investiram drasticamente em informação – leia-se escuta telefônica -, com resultados visíveis.
Na semana passada, a polícia interceptou conversas que indicavam o que estava por vir no Dia das Mães: rebeliões e atentados. Transferiu os chefes do PCC na quinta-feira e os chamou para uma conversa na sexta. Que não resultou. Da sexta para sábado, desavisados e baratinados, policiais começaram a morrer a torto e a direito. Ou seja, a impressão que dá é a de que já se chegou ao estágio da informação. Falta saber o que fazer com ela.
CENÁRIOS
Para Guaracy Mingardi, diretor científico do Instituto Latino-Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente (Ilanud), o que faltou, diante das informações de que a polícia dispunha, foi planejamento. “O Estado tem que trabalhar com a construção de cenários, com análise e previsão, com prospecção”, diz Mingardi. “É o que qualquer empresa faz. É o que os Exércitos fazem.” . Na sua avaliação, “as pessoas que tomam decisão o fizeram de forma amadorística, passando por cima dos profissionais”.
Algumas providências práticas que faltaram, indica o diretor do Ilanud: fazer chegar a todos os policiais, incluindo os que estavam de folga, a informação de que seriam alvos de ataques; reforçar bases mais isoladas; montar armadilhas para os criminosos.
As falhas sugerem que há um problema de organização e de estrutura. Para o coronel José Vicente, é preciso montar uma rede com os principais órgãos e entidades com responsabilidades na gestão dos problemas prisionais críticos: Judiciário, corregedoria dos presídios, Ministério Público, Polícias Militar e Civil e Administração Penitenciária. Sua função seria “identificar os erros e desenvolver programas coordenados de reparação dos problemas, em bases permanentes”.
O especialista recomenda também “estruturar uma poderosa unidade de inteligência direcionada para estudar em profundidade as principais redes criminosas”. Sem a preocupação de prender “ladrõezinhos”, mas de “identificar líderes e suas diferentes responsabilidades, a logística do crime (principalmente rede de comunicação e sistema financeiro) e, inevitavelmente, os policiais e outras autoridades corruptas vinculadas”.
Na opinião de José Vicente, essa unidade poderia ser montada de imediato, com o corte temporário da metade dos 700 homens do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP), “além de contar com talentos de inteligência da PM e da Administração Penitenciária”. E com a participação da Polícia Federal, de promotores do Grupo de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (Gaeco) e de juízes, para facilitar a expedição de mandados de busca e de escuta.
“Com os melhores talentos e com privilégio de recursos, essa unidade poderia apontar, em poucos meses, os caminhos para golpear severamente os pontos críticos da logística – geralmente melhor do que prender lideranças – para enfraquecer a rede criminosa”, avalia o especialista.
Até aqui, os celulares nos presídios eram instrumentais no trabalho de escuta da polícia, que por intermédio deles ficava sabendo dos planos dos bandidos. No planejamento e execução do ataque do PCC, a avalanche de ligações soterrou a polícia. “Numa situação como essa, não tem como processar tanta informação”, diz Mangardi. “Era melhor que os celulares estivessem bloqueados.”
ISOLAMENTO
Para o ex-juiz e ex-secretário Nacional Antidrogas Walter Maierovitch, a primeira medida de qualquer combate sério ao PCC, que ele situa como “pré-máfia”, seria isolar completamente os seus líderes. Maierovitch lembra que, na Itália, os chefes da máfia são trancafiados em presídios especialmente construídos para eles, nas regiões central e norte do país, portanto fora de seus redutos, no sul.
Suas celas são filmadas e gravadas durante 24 horas por dia, de maneira que, se por alguma razão um celular chega a furar a vigilância, é detectado à primeira tentativa de uso. Diretores de presídios, carcereiros e agentes penitenciários são fiscalizados por agentes de inteligência subordinados ao Ministério Público, atentos, por exemplo, a sinais de riqueza incompatíveis com salários. Os presos prestam depoimentos à Justiça por meio de videoconferência, sem sair de suas celas.
No Brasil, observa Maierovitch, o isolamento de um líder dura no máximo um ano, tempo insuficiente até para que ele deixe de ser líder. Na Itália, o chefão siciliano Salvatore Totó Riina, por exemplo, está isolado desde janeiro de 1993. “Surgem outras lideranças, mas é do jogo”, diz o especialista. “Não consigo imaginar outra solução para o PCC a não ser cortar o cordão umbilical entre a cúpula e a base.”
ACORDOS
Outro ponto fundamental, diz Maierovitch, é “eliminar a cultura do acordo”. Para acalmar os presos e amainar as rebeliões, muitas concessões têm sido feitas ao longo dos anos, como abrir as portas da cadeia para a maconha, permitir a criação de autênticos motéis, em barracas, para as visitas íntimas, a entrega de pizzas e filmes . “O Estado vai de concessão em concessão”, observa o juiz Maierovitch. “Tem que se impor o rigor penitenciário. Não tem que ser masmorra, mas o desconforto necessário para o sujeito compreender o que fez.”
“O Estado deve negociar através do Ministério Público e da delação premiada”, sintetiza o especialista. “Aquele que quer mudar de lado, tem benefícios. Mas não se pode tratar o PCC como pessoa jurídica. Com organização criminosa não se faz acordo, se não o Estado se torna bandido.”