‘Que saudade!’

No tempo do pão e leite na janela, das portas destrancadas, dos bondes nos trilhos. A história de Abelias, o respeitado condutor de bonde que veio analfabeto da Bahia.

 Quando lhe perguntam como fez para vir da sua Brumado natal, no sudoeste da Bahia, Abelias Rodrigues da Silva, 89 anos, simplifica: “Vim a pé. E vim rápido.” Depois de 15 dias de travessia, ele e dois irmãos chegavam à Fazenda Coqueiral, em Ubarana, na região de São José do Rio Preto. Foram trabalhar na lavoura de café. Era o ano de 1928. Abelias, então com 14 anos, pegou “o fim da fase áurea do interior”. Simbolizado, no seu caso, por uma geada que queimou os 12 mil pés de café da fazenda, em 1935.

Já com 21 anos, Abelias decidiu vir tentar a sorte na capital. “Encontrei São Paulo ainda na fase gostosa”, descreve ele. “Um tempo em que se podia deixar o pão e o leite na janela, em que a porta ficava aberta. Não havia perigo.” Abelias foi morar no número 193 da Rua Tobias Barreto, no Belém (zona leste), num sobrado onde vivia um jardineiro do Cemitério da Quarta Parada, do qual ele se tornou ajudante.

Ficou assim dois anos. “Até que tomei conhecimento dos melhores empregos em São Paulo e localizei a Light: era a melhor empregadora.” Nesse ponto, Abelias, que viera analfabeto da Bahia, já tinha feito o curso primário na escola rural de Córrego dos Pitos, em Ubarana. Era o bastante para dar o enorme salto de sua vida. Depois de ter vindo a pé do sertão, Abelias ingressava no mundo futurista do bonde elétrico, o arrojado meio de transporte que despertou São Paulo de sua letargia provinciana.

Considerado apto pela inspeção médica, Abelias freqüentou o curso de 30 dias da escola da Light, no qual “se aprendia tudo o que era preciso saber para ser condutor de bonde”. Terminado o curso, os candidatos passavam por um exame do Departamento de Transporte Público da Prefeitura.

“Eram rigorosos”, lembra Abelias, discorrendo sobre os perigos e responsabilidades da profissão. “Havia poucos automóveis e mesmo assim muitos acidentes.” Os bondes tinham de disputar espaço com os outros veículos em ruas estreitas como a da Cantareira, Florêncio de Abreu e São Caetano. “Vinham caminhões do interior, que não tinham a malícia do perigo e estacionavam mal.” Para completar, a garoa constante deixava os trilhos escorregadios, fazendo os bondes deslizarem. “Havia abalroamentos de bondes e até os passageiros no estribo podiam se machucar.”

Abelias, no entanto, passou nos testes. “Tornei-me condutor de bonde, de que muito me orgulho”, diz ele, exibindo a sua Carta de Motorneiro de Bonde, emitida no dia 16 de junho de 1937, sob o número 565, admiravelmente intacta dentro de uma carteira vermelha de capa dura plastificada. “Ser condutor era ser malabarista.” Enquanto os bondes, muitos ainda abertos, serpenteavam pelas ladeiras e curvas do centro de São Paulo, ele tinha de percorrer os seus 13 bancos e estribos, para cobrar a tarifa de 200 réis dos passageiros, que quando lotado passavam de 100 – 65 sentados e os restantes de pé.

O condutor tinha de fazer relatórios sobre a duração dos trajetos, número de passageiros, eventuais acidentes de percurso. Muitos condutores ambicionavam depois de um tempo passar a motorneiro. Ambos ganhavam o mesmo salário: 1.200 réis por hora inicialmente, com aumentos anuais de 500 réis, até chegar ao topo, em 10 anos. Mas o motorneiro parecia trabalhar menos: tinha só de se preocupar em dirigir o bonde e mantê-lo no horário.

Abelias virou motorneiro, mas não gostou, por causa do estresse do horário, que tinha de ser rigorosamente cumprido. “Havia muito bonde em circulação e acabava atrasando. Aquilo me deixava constrangido e por vezes até irritado.” Pediu para voltar a ser condutor, profissão que apreciava muito também pelo “aspecto social”: depois de cobrar as passagens, sempre sobrava um tempinho para conversar. “Eu tinha uma porção de amigos passageiros e passageiras. Era uma delícia.”

Tanto motorneiro quanto condutor “gozavam de respeito pleno do público”, orgulha-se Abelias. “Eram autoridades, e se fossem contrariados, chamavam o primeiro guarda que aparecesse e o indivíduo tinha de descer do bonde. Se o condutor percebesse que alguém tinha descido sem pagar, ia atrás da pessoa na rua e a fazia parar e pagar.” E tinha o apoio dos passageiros, que ajudavam o condutor a identificar os “caronistas” e seus truques.

O símbolo máximo do status dos funcionários do bonde estava no terno de lã canadense azul marinho, com três botões cor de bronze, camisa branca de algodão e gravata de pano preto, o quepe com uma placa de identificação e os sapatos pretos de couro liso. Apesar de impróprio no verão, “aquele uniforme salvou a vida de muita gente”, diz Abelias, na São Paulo predominantemente fria e úmida. “Era só chegar em casa e pendurar o paletó molhado na cadeira, que no dia seguinte já estava seco.”

Abelias se casou com Dirce em 1944, com quem teve duas filhas. Foram morar no número 460 da Avenida Álvaro Ramos, no Belém, num sobrado que mais tarde seria demolido pelas obras do metrô. Ficaram por lá seis anos, enquanto esperavam a casa própria, financiada pela Caixa de Aposentadoria e Pensões dos funcionários da Light e, depois, da CMTC.

Foi um dos pioneiros da Cidade Dutra (extremo sul de São Paulo), num conjunto da Caixa. Ali, o bonde não chegava. Ia até o Largo do Socorro, onde se tomava um ônibus, que nos dias de chuva não vencia a subida de terra da Rua Santa Teresa. “Era distante, mas tínhamos uma casinha confortável”, lembra Abelias. Tinham 20 anos para pagar, mas a Caixa acabou anistiando muitos mutuários.

Embora admirado com a Light, inicialmente Abelias não tinha planos de ficar ali por tanto tempo. Empregado como condutor, ele continuou seus estudos iniciados no interior, fazendo o curso de “propedêutica” (equivalente ao ginásio) na Academia Comercial do Belém, na Rua da Redenção, 549. “Que saudade!”, suspira Abelias, lembrando-se de seu professor Armênio.

Sua idéia era se tornar comerciário. Mas os estudos só o fizeram se firmar na companhia. “Na Light havia uma máfia danada. Quando os italianos estavam no poder, mandavam em tudo. Depois caíam e entravam os portugueses”, conta o baiano. “Mas era todo mundo analfabeto. Quando descobriram que eu sabia ler, escrever e contar, começaram a me tratar com respeito. Acho que foi por isso que fiquei na companhia.” De condutor, Abelias passou a fiscal. Em 1973, depois de 38 anos de serviços prestados, aposentou-se, já pela CMTC, como assessor do superintendente de tráfego. Seu ex-chefe, José Teixeira da Encarnação, morreu no dia 5 de novembro.

Abelias, que nasceu num lugar onde “só aparecia o Almanaque da Bayer no fim do ano, e não havia nada mais para ler, nem mesmo jornal”, tomou gosto pela leitura e virou autodidata. Em 1978, por insistência de um amigo, o deputado Freitas Nobre, elegeu-se deputado estadual suplente pelo MDB, com 22.916 votos, e assumiu no fim do mandato a vaga do Professor Dias, eleito deputado federal. Mas não gostou da experiência. “Foi uma grande decepção”, conta. “Essa gente não quer nada com trabalho, com a vida do povo, cada um quer se arrumar à sua maneira.”

Esbelto, lúcido e bem disposto, Abelias vive hoje com Dirce, de 82 anos, numa casa de fundos da Avenida Santo Amaro, numa pequena parcela do que foi uma chácara da avó dela, e que foi sendo retalhada e vendida pelos herdeiros. “Já vivi a vida”, diz ele. “Talvez já esteja no fim da jornada. Sinto que deixei de aprender muita coisa. Podia ter feito muito mais. Mas, para quem saiu de casa analfabeto, só tenho que dar graças a Deus.”

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