Após décadas de obras paliativas, governo iniciou em 2002 aprofundamento da calha, que será entregue este mês
Dizem que os rios são espelhos das cidades por onde passam. Durante décadas, São Paulo virou a cara para não ver o que o Tietê refletia. Em épocas de fortes chuvas, o rio e seus afluentes, convertidos em esgoto a céu aberto, devolveram o desprezo, suas águas fétidas violando impunemente o direito de ir e vir, inundando casas, matando gente. Ao longo de muitos anos, a reação de governos foi paliativa. Milhões de dólares foram enterrados nas margens lamacentas, enquanto caçambas faziam um trabalho de formiga, transportando areia e argila retiradas do leito. Sedimentos logo repostos pelos 59 córregos e 4 rios (Tamanduateí, Aricanduva, Cabuçu de Cima e de Baixo) que deságuam no Tietê, levando 800 mil metros cúbicos de detritos por ano.
Quem primeiro atacou as causas do problema foi o governador Mário Covas. Com financiamento japonês, Covas rebaixou a calha do Tietê nos 16 quilômetros entre a Barragem Edgard de Souza, em Santana de Parnaíba, e o Cebolão, entre abril de 1998 e dezembro de 2000. Covas deixou o cargo, doente, em 22 de janeiro de 2001, dia em que o governador Geraldo Alckmin anunciou o projeto de aprofundar em 2,5 metros a calha do Tietê nos 24,5 km do Cebolão à Barragem da Penha, alargá-lo para o mínimo de 40 m e revestir as margens de concreto, para evitar que a terra continuasse caindo no rio.
O projeto, que envolveu explodir rochas no leito e reforçar estruturas de quatro pontes e da Marginal, não saiu barato. Quando Covas firmou convênio com o Japan Bank for International Cooperation (Jbic), em junho de 2000, ele foi orçado em R$ 730 milhões. Desses, 75% seriam bancados pelo Jbic, e o resto pelo Estado. Iniciada em abril de 2002, a obra que será entregue este mês custou R$ 1,07 bilhão. O Jbic bancou 65%.
O aprofundamento e o alargamento aumentaram em 80% a capacidade de vazão, de 600 metros cúbicos por segundo para 1.048. Sem isso, chuvas como as que caíram desde o réveillon na capital teriam efeitos bem piores. Agora o rio consegue assimilar, sem transbordar, 99 milímetros de chuva sobre toda a Bacia do Tietê durante 12 horas, ou 122 mm durante 24 horas. Na última enchente do Tietê, choveu mais que isso: entre 16 horas do dia 24 de maio e 9 horas do dia 25, foram 140,4 mm. Assim, não dá para bradar ‘enchentes nunca mais’. ‘Depende da chuva’, diz Mauro Arce, secretário de Energia, Recursos Hídricos e Saneamento do Estado. Mas a obra deve reduzir a freqüência de cheias e eliminar os pontos de alagamento sob as Pontes das Bandeiras, da Casa Verde e Anhangüera.
Na aparência, o Tietê ganhou, entre a Barragem da Penha e o Cebolão, a feição dos rios que cortam as grandes cidades de países desenvolvidos. Virou um canal, com taludes de concreto. Nove milhões de m³ de rocha, solo local e proveniente do assoreamento foram retirados do Tietê. Desses, 300 m³ eram material contaminado, fruto de hábitos como jogar baterias nos afluentes. Foram levados para aterros especiais. O resto serviu para aterrar a Lagoa de Carapicuíba, buraco feito pela extração de areia que o Tietê inundou. Ali está sendo construído um parque de 150 mil m². O aterro não passou despercebido da ONG Grito das Águas, que o denunciou ao Ministério Público, que, por sua vez, obteve a sua interdição. A obra praticamente parou de agosto de 2003 a novembro de 2004, quando o governo venceu no Supremo Tribunal Federal.
Além de evitar enchentes, o aprofundamento da calha permite a navegação do rio, para transporte. E para manutenção, afinal, 800 mil m³ de areia e argila seguirão entrando no rio por ano, trazidos por seus afluentes. ‘O grande desafio de quem ficar depois da gente é a manutenção’, diz Arce. ‘Depois de cada cheia, vai ter que limpar. No Brasil, não gostam de pagar manutenção.’ O secretário estima que sejam necessários 100 operários para o trabalho. Não é muito, perto da média de 1.180, com picos de 3.100, empregada na obra nesses quase quatro anos – houve 3 mortes em acidentes no período.
Será que a obra pode ser vitimada pela politicagem, se um governador adversário for eleito este ano? Arce espera que não. ‘ O metrô entrou em operação em 1974 e continua com a mesma qualidade’, diz. ‘Esta obra foi aceita pela população, todo mundo está achando bonito. Se quem vier depois a abandoná-la, vai ser muito cobrado.’ O projeto inclui, além de 9 mil árvores nas margens, holofotes sobre o Tietê, que Arce considera tão importantes quanto os 100 mil m² de concreto usados. Eles ajudarão os paulistanos a enxergar o seu rio.